[Cristina Drios e a leitura de «Todos os Dias São Meus»]
A leitura pode proporcionar, já se sabe, conhecimento,
entretenimento e terapia. E é desta última qualidade que, por estranho que vos
pareça, vos falarei, a propósito da leitura do romance “Todos os Dias São Meus”
da Ana Saragoça. De facto, a vertente terapêutica da literatura está comprovada
por estudos científicos. Talvez não saibam que, por exemplo, em França, durante
a Grande Guerra, a leitura de romances específicos era recomendada aos
soldados, nos seus tempos livres. Recentemente, li algures que nos Estados
Unidos da América, os psicólogos “receitavam” regularmente livros em vez de
comprimidos. Sem consultar nenhum especialista, sempre me dei bem com esta
terapêutica. Se estiver mal, não tomo nada, pego num livro. Se o livro for bom,
em geral, começa a fazer efeito após meia hora, uma hora de leitura. Se o livro
for excelente, como no caso de “Todos os Dias São Meus”, começa a fazer efeito
a partir das primeiras linhas. Não existe substância química – que eu saiba –
tão eficaz. O problema é, tal como com os medicamentos, não sabermos à partida
se o que estamos a tomar é verdadeiramente adequado ao nosso mal. Certos livros
são apenas placebos, outros podem ser uma óptima terapêutica mas não ser a
indicada para o nosso caso. Ora, nunca me tinha acontecido ler um livro que me
curasse. Era, na verdade, uma coisa sem importância, uma ideia parva, de que só
nos lembramos de vez em quando, como uma urticária incomodativa, e que
guardamos, sem contar a ninguém, até perdermos totalmente o sentido do
ridículo. Como já o perdi, vou então contar-vos: toda a vida morei num prédio
com elevador e toda a vida sofri de alguma imaginação. E sempre que entrava no
átrio do prédio, a penumbra e o fresquinho faziam-me temer que ao chegar o
elevador, abrindo-se a porta exterior de rompante, se me deparasse um morto,
por detrás das grades. Nenhum morto em particular, um morto qualquer,
desconhecido! Cheguei mesmo a escrever um conto sobre isso. Foi, porém, a
leitura do romance “Todos os Dias São Meus” da Ana Saragoça que me curou. Sem
vos desvendar a intriga, imaginem o meu espanto ao, logo nas primeiras páginas
do livro, me deparar com esta cena:
“E estava muito desfigurada? Quando eu lá cheguei já não
consegui vê-la, estavam a levá-la toda tapada. Nem me deixaram entrar no elevador,
caramba, também que exagero, afinal uma pessoa mora aqui, tem direitos, não é,
se calhar até podia encontrar alguma coisa que ajudasse a Polícia. E não está
certo obrigarem uma pessoa a subir as escadas a pé. Tiravam o corpo, limpavam,
e deixavam as pessoas irem à vida delas.
Mas olhe que foi uma coisa feita com cuidado. À hora do
jantar, num elevador, podia ter sido apanhado.”
Todos os Dias São Meus (pág. 12)
O que é certo é que depois de ler o “Todos os Dias São
Meus” nunca mais temi encontrar um morto qualquer, desconhecido, sem rosto nem
identidade, esvaído dentro do elevador. Nunca mais me assustei e estremeci ao
abrir a porta e ao espreitar pelas grades. Agora entro no átrio do prédio,
adianto-me na penumbra e no fresquinho, carrego no botão de chamada, oiço o gemer
da maquinaria, o resfolegar ao aterrar no rés do chão, a campainha perlimpimpim
que retine, abro a porta de rompante e lá está a tua personagem, Ana Saragoça!
Está mortinha da silva mas é uma conhecida, uma amiga! Os vizinhos, se
espreitarem pelo óculo, desconfiarão do meu sorriso tolo, paciência... E assim
em todos os meus dias, sem excepção, por vezes repetidamente, porque moro no
sexto, “Todos os Dias São Meus”!
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