[A leitura de Pretérito Perfeito por Sónia Alcaso]
"Passei o dia sem dores, atento ao meu corpo,
desconfiado, aliviado, feliz mesmo, a felicidade de ter um corpo sem dor a
funcionar sem auxílio, nem fármacos, nem próteses, nem cães-guias, nem canadianas, nem muletas, nem cadeiras de rodas."
(página 56 in "Pretérito
Perfeito")
Custa a crer-lhe que o mundo continue a existir
depois. Custa a crer-nos também a nós. E, no entanto, é
o fim que paira logo no início
deste livro e que nos lança em modo de semi-penumbra. Ficamos ínfimos,
frágeis e demasiado materiais (ou diria imateriais?).
Aqui domina a morte, mas parece vencer a vida (e
vidas) que se desenrolam a uma velocidade assustadoramente rápida. O tempo é
sempre insuficiente e só se dá por isso quando o final se anuncia. Sem hipótese
de fuga, confrontamo-nos, neste livro de Raquel Serejo Martins, com a morte
- a de Vasco, a nossa - e a ela
voltamos, mesmo que, em muitos momentos (nas memórias),
nos ausentemos dela. É
esta a consequência de se andar pelo
mundo.
Um livro poético e tragicómico porque, apesar do peso, há humor nesta escrita. E
digo-o consciente de que é
não é
fácil fugir ao dramatismo das palavras quando tudo o que está em jogo é
o milagre da vida e a ausência
dela. Raquel consegue-o, como se não desconfiasse no fundo da verdade, mas preferisse eleger uma outra,
suspensa. Como uma textura musical, "uma áspera,
quase agressiva, mas inquestionavelmente romântica
sonata de Brahms".
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