30/12/2014

Futuro a prazo?

[A leitura de Pretérito Perfeito por Sónia Alcaso

"Passei o dia sem dores, atento ao meu corpo, desconfiado, aliviado, feliz mesmo, a felicidade de ter um corpo sem dor a funcionar sem auxílio, nem fármacos, nem próteses, nem cães-guias, nem canadianas, nem muletas, nem cadeiras de rodas."
(página 56 in "Pretérito Perfeito")




Custa a crer-lhe que o mundo continue a existir depois. Custa a crer-nos também a nós. E, no entanto, é o fim que paira logo no início deste livro e que nos lança em modo de semi-penumbra. Ficamos ínfimos, frágeis e demasiado materiais (ou diria imateriais?).

Aqui domina a morte, mas parece vencer a vida (e vidas) que se desenrolam a uma velocidade assustadoramente rápida. O tempo é sempre insuficiente e só se dá por isso quando o final se anuncia. Sem hipótese de fuga, confrontamo-nos, neste livro de Raquel Serejo Martins, com a morte -  a de Vasco, a nossa - e a ela voltamos, mesmo que, em muitos momentos (nas memórias), nos ausentemos dela. É esta a consequência de se andar pelo mundo.

Um livro poético e tragicómico porque, apesar do peso, há humor nesta escrita. E digo-o consciente de que é não é fácil fugir ao dramatismo das palavras quando tudo o que está em jogo é o milagre da vida e a ausência dela. Raquel consegue-o, como se não desconfiasse no fundo da verdade, mas preferisse eleger uma outra, suspensa. Como uma textura musical, "uma áspera, quase agressiva, mas inquestionavelmente romântica sonata de Brahms".

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