30/07/2014

‘Todos os Dias' nos dias da minha vida

[a autora Ana Saragoça sobre o seu «Todos os Dias São Meus»]

Tenho um amigo que diz: ‘Nunca conheci uma alentejana que não fosse acelerada’. E quem passe um dia que seja numa localidade alentejana verá que o mulherio anda sempre numa fona. Quando lá passo uns dias, a casa dos meus pais é visitada por imensas primas e amigas que estão sempre a caminho de fazer alguma coisa. A minha prima Maria Joaquina, de 80 e muitos anos, está no lar da terceira idade, sim senhora, mas para não se aborrecer tira e põe as mesas e descasca todas as batatas que lhe puserem na frente, ‘eu tenho lá vida para ficar a olhar para as paredes, filha’. 

Eu herdei a feminina aceleração alentejana, mas infelizmente alio-a a uma forte dispersão. Sou desorganizada, e tenho sérios problemas em acabar o que começo, a não ser que tenha um prazo a ladrar-me às canelas. 

Comecei a escrever Todos os Dias São Meus em 2001. Estava deprimidíssima, a profissão para a qual estudara e a que me tinha dedicado de corpo e alma já não me queria. Tinha feito uma pausa no teatro para ter um filho e, no momento em que o fiz, deu-se o boom da ficção televisiva, do qual perdi o comboio. Com trinta e quatro anos, era muito nova para fazer de velha, e muito velha para fazer de nova – na época eram as únicas faixas etárias admissíveis, hoje felizmente isso mudou, mas tarde demais para mim. 

Uma noite recordei em sonhos o cão de uma amiga que vomitava sempre que entrava num elevador. Só que no meu sonho aparecia também a minha então vizinha do rés-do-chão, uma megera metediça. Acordei, sentei-me ao computador e nasceu a Porteira que abre o livro. E mais algumas personagens.

E entretanto meteu-se a vida. Precisava de me reformular profissionalmente e dediquei-me ao ofício que sempre exercera a par do de actriz, a tradução. E aí há sempre prazos a ladrar-nos às canelas, sempre. A história que tinha começado e que na minha cabeça já completara até à última frase não tinha pretensões caninas, portanto foi dormir numa disquete. 

Em 2010 reencontrei um grande amigo de juventude, que nos idos de 80 me tinha influenciado tremendamente as leituras. Ao ler o seu blog, lembrei-me de repente da minha história adormecida. A medo enviei-lha, e em resposta recebi a ordem de a terminar. Agora tinha uma voz imperiosa a pressionar-me, e outros olhos que não os meus tinham lido o que escrevera, portanto fiz de conta que tinha um prazo a ladrar-me às canelas e terminei-o. 

Saiu-me pequenino como era o meu filho ao nascer, um coelhito esfolado de dois quilos e seiscentos que ficava a nadar em todos os babygrows. Mas, tal como o meu filho, achei-o composto e consegui deitá-lo ao mundo. 

Demorei 11 anos a produzir 100 páginas. No ano seguinte, com um prazo a ladrar-me às canelas – um ladrido simpático mas exigente – produzi um livro com muitas mais. 

Leio com inveja sobre as rotinas de escrita dos autores que mais admiro, e em todos encontro uma linha comum: a disciplina. Ou isso ou são mentirosos, também pode acontecer. Mas a verdade é que escreveram e escrevem e publicam livros fantásticos. E eu continuo a tentar convencer-me a fazer todos os meus dias dias de escrita, mas deixo a vida entrar por todos os lados e lá se vão as boas intenções. Alguém me ladre às canelas, por favor, porque escrever e ser lida é para mim uma felicidade incomparável. 

1 comentário:

  1. Jesus, como me revejo neste relato... é substituír o verbo escrever por desenhar e a palavra livro por ilustração, e estes dias são os meus, chapadinhos. Também eu funciono muito à base de last-minute panics!
    E posto isto, aqui me tens, a ladrar-te furiosamente às canelas.

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