“Marília adormece só, como só se recordava gente desde sempre, passam as horas e ninguém lhe nota a falta, e ela a de ninguém também. Escorre-lhe água pela face, são centenas, milhares de gotas as que naquela noite lhe lavam cara e alma, e é quando Marília sente a estranheza do calor de uma lágrima e, perplexa, recorda todos os momentos em que, pulando-lhe o coração, se sentiu alguém e feliz, que entende que nunca ninguém a entenderá. E é nessa lágrima final que se deixa morrer de vez no mundo dos lúcidos e parte na lucidez do mundo dos loucos.”
O Intrínseco de Manolo (pág. 81)
Marília pouco se dá a nós, leitores, e, no entanto, seria, para mim, personagem de solidão e vazio, como se, feita de ar, flutuasse acima da realidade, da imundice e da pulhice que grassam em Cousa Vã, e nem sequer conseguisse ser beliscada por elas, merecedora de um livro inteiro. “Só, como só se recordava gente desde sempre”: como todas as grandes personagens carrega com dignidade o fardo da condição humana enquanto, ao mesmo tempo, é a antítese de tudo o que há de porco, feio e mau, de terreno, físico e suado, noutras personagens do romance. A lágrima quente que lhe desce pelo rosto já foi chorada por santos, por loucos e por nós, leitores. Todos somos, desse modo, um pouco Marília. Eu muito gostaria de ser apenas lágrima.
"Summer Interior", de Edward Hopper |
“E é aqui que nós paramos e ficamos também, com Marília e o seu mundo cheio de horas completas e momentos vazios, descobrindo, abismados, a magnitude da mediocridade das gentes de fácil julgamento.”
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