29/07/2014

Enrolado aos trambolhões

[João Rebocho Pais e a leitura de «Todos os dias São Meus»]

«No colégio havia uma empregada alentejana. Passava a vida a falar na terra dela. Vila Nova da Baronia. Eu, que não fui nunca de lugar nenhum, invejava aquele pertencer tanto a algum sítio. O nome da vila punha-me logo a ver muralhas numa planície amarela.
Santa Águeda curada por S. Pedro na prisão,
de Giovanni Martinelli
Um dia, depois das férias da Páscoa, ela voltou com fotografias da terra. Muralhas, nem vê-las. Mas não era preciso. Ser daquelas pedras frente à igreja branca; ser daquele largo com laranjeiras, ser daquela estação de caminho-de-ferro tão limpa e florida; e ser daqueles campos, não amarelos, mas verdes, verdes porque 'é a altura das festas de Sant’Águeda, que é quando o campo está mais bonito'; se eu fosse de algum sítio, decidi logo ali aos treze anos, queria ser de Vila Nova da Baronia.
Não perdia uma oportunidade de ouvi-la de contar as trezentas mil histórias da vila. Fiquei a conhecer-lhe todos os vizinhos, a loja onde se aviava, o posto dos correios, os Bailes da Pinha na Sociedade, as festas na Casa do Povo, os funerais, a procissão onde chegara a ser a Verónica, o casamento da irmã com o homem que ela sempre quisera para si, o desfile do Entrudo, coisa séria e de gente grande, para o qual raparigas e rapazes se preparavam primorosamente – lá vai a Isabel de índia, lá vai a Dete de joaninha, depois de horas a fazer bolinhas com um furador em papel de lustro preto e a colá-las nas asas de papel encarnado, o Zagaia de mulher, o António Zé sem dentes e de cajado a fazer de velho.»
Todos os Dias São Meus (pág. 40/41)

Escolhi este pequeno trecho do livro sem nenhuma razão em especial.
E porquê? Porque qualquer bocado do livro que trouxesse para falar seria bom. Esta é a primeira conclusão a que cheguei ao terminar o livro da Ana. Todas as palavras, frases, períodos ou parágrafos estão vestidos a rigor e sem mácula nem sobras. Nada a mais, nada em falta. O enredo faz jus à estrutura que ela utiliza, uma coisa promiscua, em que nos agarra, aos leitores, nos envolve com a gente que ela criou do nada, no alvoroço de uma imaginação tão fértil quanto real, em que nos deixa com a sensação de que não nos iremos sem antes lhes perceber o destino, os tiques, as ‘coisices’ que tanto e tão bem reconhecemos.

Poderia, mas não vou fazê-lo, enquadrá-la no registo de escrita de outro autor que me fascina. Seria no entanto injusto. Ele é ele, a Ana é a Ana. Ou seja, nem o Mário Zambujal é para aqui chamado, nem a Ana é daqui levada. Mas lá que ambos têm aquele condão de nos enrolar aos trambolhões por entre ruas e escadas que subimos e descemos sem sequer desejar respirar, lá isso é verdade. Mas pronto, não vou compará-los.

Por um acaso que me levou a passar uma tarde entre leitores que gostam de conhecer autores, fui arrasado com uma representação da Ana, em que lia alto um pequeno trecho do seu livro. Num qualquer outro lugar com paixão pela escrita, a Ana veria este seu romance levado ao palco. Um monólogo que se tornaria imparável. Consigo facilmente imaginar-lhe um público fascinado. E, porque esse lugar de paixão pela escrita não será certamente este em que vivemos, fico-me pela imaginação e confissão pública.

«Todos os Dias São Meus» deve ser lido, absorvido, repetido.
Sorte a minha que já o fiz, e por isso, apenas por isso, vos aconselho a experimentar.
Procurei o livro nas livrarias, para comprar e oferecer, mas ‘não havia, estava esgotado’. Não esmoreci, falei com a Ana Saragoça e ela tratou de mo pôr ao colo.
Façam-no também.
Não por mim. Não pela Ana. Mas porque é bom.
Muito bom!

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