[Ana Saragoça e a leitura do «Revolução Paraíso»]
‘Das
trevas de um desespero incomensurável espigou a invenção das mulheres de
letras. Forjou-as como seres capazes de o acarinharem incondicionalmente e sem
segundas intenções. Eram mulheres ansiosas por resgatá-lo àquele desgosto sem
fim.
-
Mulheres capazes de me recolherem no colo e afagarem o cabelo.’
Revolução Paraíso (págs. 219/220)
Revolução Paraíso (págs. 219/220)
Comecei
a aprender História nas paredes. Ainda não sabia que ela estava a acontecer à
minha frente, mas não perdi pitada dos emocionantes desenvolvimentos diários
dos primeiros tempos pós-25 de Abril. No banco traseiro do carro do meu pai, esborrachava
o nariz contra o vidro e lia as paredes onde se exprimiam graficamente os
embates de todas as facções em harmonia (soldados, camponeses e operários de
braço dado numa caminhada de peito aberto em direcção a amanhãs cantantes) e em
conflito (capitalistas de chapéu alto, casaca e narizes aquilinos, chupando
enormes charutos e escondendo atrás das costas bombas iguaizinhas às dos Looney
Tunes). E os símbolos: a foice e o martelo, a estrela vermelha, o punho
erguido, a roda dentada, as três setinhas. E os galhardetes: comuna, facho,
vira-casacas, burguês, reaça, bufo. E os slogans, cuja infinita variedade deixo
à descoberta do leitor na prodigiosa compilação contida neste livro.
Ao contrário
da minha mãe, geneticamente programada para o medo, eu achava tudo aquilo uma
festa pegada, uma festa linda, tão linda que nos cartazes em que o PRP mandava
‘armar o povo’ eu lia sempre ‘amar o povo’. E os adultos eram uma fonte
inesgotável de entretenimento. Não havia reunião de amigos ou familiares que
não acabasse aos berros e aos murros na mesa: ‘Eu estive em África, pá!’ ‘Não
foi para isto que se fez o 25 de Abril!’ ‘Era todos encostados à parede e
fuzilados!’ – de repente, homens incapazes de matar uma mosca ficavam de cinco
em cinco minutos a uma unha negra de se esganarem mutuamente, com as mulheres
divididas em duas facções: as que gritavam para eles não se degraçarem e as que
gritavam em incitamento, giríssimas como a Pandora do livro, de saias curtas,
sapatos de plataforma, maquilhagem berrante e sempre sempre de cigarro em
riste, céus, como eram giras aquelas mulheres e como eu sonhava vir a ser como
elas.
Comecei
a ler nos enormes jornais de parede do MRPP, gritos amarelos, vermelhos e
pretos desenhados com uma precisão directamente contrastante com o ar
descabelado dos seus autores. O amor pelas letras, que já vinha da primeira
infância, cresceu exponencialmente ao vê-las saltar das páginas dos livros para
as paredes da cidade. E até hoje é nas letras que reside a maior fonte de
consolo e emoção e excitação que conheço.
Que
tem isso a ver com mulheres de letras? Para saber isso terão de ler o livro do
Paulo.
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