13/01/2015

A Flor do Meu Segredo

[a leitura de Esta Noite Não Aconteceu por Ana Saragoça]


Eu escrevi durante anos o que achei que as pessoas queriam ler, mas sinto-me cansada. Sei que posso ir mais longe. E para isso vou usar as minhas próprias memórias como ficção. E a minha própria vida como tema.

Esta Noite Não Aconteceu, página 73


Palavras de Rosário Toledo, cujo nome e ofício se associaram de imediato na minha mente à protagonista de um longínquo filme de Almodóvar. A memória do filme já está muito esbatida, mas ambas, Leo e Rosário, são prisioneiras do próprio sucesso como autoras de romance cor-de-rosa, ambas são frias e impiedosas, ambas têm um segredo monstruoso, ambas são cegas à realidade mais próxima, ambas são infelizes, e ambas são inventadas. Se são inventadas por si próprias ou por um realizador espanhol e uma escritora portuguesa, isso é secundário, até porque, tendo tanto em comum, são totalmente diferentes. O principal é que por trás do rosa mais vivo se esconde muitas vezes uma alma mergulhada na mais negra escuridão.

Tal como os passageiros frequentes passam por cima das instruções de segurança do pessoal de cabina dos aviões, assim os leitores batidos saltam enfastiados a tal ladainha de abertura nos livros: ‘Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com factos ou pessoas reais é mera coincidência.’ E fazem bem, porque é uma das mais cabeludas mentiras da literatura de todas as cores. Quantos de nós não se encontraram já retratados nas letras de um autor que nem sequer nos conhecia, que era mesmo pessoa para ter morrido umas valentes décadas antes da nossa vida ao mundo? Mera coincidência? Não. Acontece apenas que muitos dos nossos segredos mais íntimos já existiram em outros seres, que a seu tempo foram detectados por algum escritor.


Quanto ao que esta noite aconteceu, ou não aconteceu… isso é a flor do segredo da Sónia Alcaso. 

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