15/01/2015

Sónia Alcaso: furacão dos sentidos

[Paulo M. Morais traça o perfil de Sónia Alcaso]

Devo conhecer a Sónia Alcaso talvez há uns 15 anos. Muito antes, portanto, de termos escrito livros. Então quem poderei eu perfilar: a pessoa que se tornou uma amiga ou a pessoa que se tornou uma escritora? E o que interessará mais a quem ler estas linhas?

Tento encontrar um terreno comum para traçar este perfil e encontro as palavras. A nossa amizade criou-se, inicialmente, por causa das palavras. É que os primeiros olhares que trocámos, num local de trabalho, foram de desconfiança: eu já lá estava, ela aparecia como a intrusa. Depois, algures, sem saber precisar bem quando ou como, descobri que aquela Sónia, a Alcaso, escrevia. Sim, ela escrevia frases, parágrafos, textos muito belos. E também lia. Lia muito. E fez-me ler. Já com a amizade a ser instaurada através de palavras escritas e faladas, lembro-me de que ela me ofereceu “A Náusea”, do Jean-Paul Sartre. Com dedicatória, claro está, que a escrita tinha de estar colada à leitura.

Perguntei-lhe para este perfil o que ela encontra na leitura que não existe noutra coisa. Ela respondeu-me: «A imaginação, os sonhos, essas outras vidas ocultas que todos temos e nem sempre se vêem. Os livros mostram.» E depois perguntei-lhe ainda o porquê de escrever. «Porque, citando Faulkner, ‘é a minha vida secreta’». E acrescentou que para escrever mais lhe falta «conseguir mais solidão».

E aqui entro eu, o amigo, a saltar 15 anos até ao presente, para dizer que a Sónia Alcaso é muito mais do que palavras lidas e escritas em solidão. Quero chamar-lhe um furacão de vida, mesmo que soe a lugar-comum, por saber que ela já suportou e superou momentos complicados, sustentando-se numa força interior enorme. Porque lhe reconheço uma paixão e pulsão por viver, viver a sério, que é rara. E também porque a nossa relação não se limita ao politicamente correcto, às palmadinhas nas costas, aos silêncios para não melindrar. Entre nós dizemos o que precisa ser dito. Divergimos, contrariamos, criticamos, a maior parte das vezes por palavras faladas, face a face, apesar de gostarmos tanto das palavras escritas.

Esse é o outro lado da Sónia Alcaso. O da mulher que quer estar na vida com todos os sentidos. Que quer sair do seu refúgio, da sua “solidão” de escritora, para ver pessoas, para sentir o cheiro das ruas, para comer bolos numa pastelaria. Neste perfil não podiam faltar os nossos cafés. Mesmo espaçados, são esses encontros que delimitam a nossa amizade. E essa foi a minha terceira e última pergunta para este texto: o porquê de ela ter uma certa aversão à interacção através das redes sociais? E ela, por palavras escritas, assegura-me que não tem qualquer resistência à tecnologia que, sem margem para dúvidas, «fez o mundo avançar, a passos gigantes». Então? «Só me chateia que a comunicação entre as pessoas se esteja a transformar. As pessoas refugiam-se, cada uma em sua casa, e comunicam. Parece que já não precisam de se tocarem (comerem bolos juntas), de se ouvirem... vozes, um timbre de humanismo. A mesma tecnologia que facilita a vida, dilui a humanidade.»


Leram? O sabor do bolos. O contacto de peles. O timbre das vozes. E tudo isso formulado com palavras tão belas. Eis o que, para mim, se tem nos melhores momentos da escritora Sónia Alcaso: a descrição certeira das sensações da vida, quer seja uma mulher a ter um orgasmo ou um homem a saborear um pastel de nata.

Estou convicto que os homens que guardem cartas de amor escritas pela Sónia, volta e meia pegam nelas para sentir o perfume da vida vivida. Eu, admirador confesso deste furacão (diferente de mim em tantos aspectos), gosto especialmente desta amizade prolongada, marcada pelos abraços à porta duma pastelaria, já de olhos postos nos bolos que vamos comer entre as conversas onde partilhamos as nossas vidas. E, nos hiatos desses encontros (onde tanto nos instigamos a continuar a escrever, apesar de todas as dificuldades), lá fico numa ânsia de que ela me dê, a mim e aos outros leitores, mais palavras em livro.

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