[a leitura de Dizem que Sebastião por Ana Saragoça]
‘… um
remoinho arrastava folhas e papéis pelo chão numa coreografia de esperança
voadora: afinal, as coisas inertes não o eram, voavam até, vindas dali e voadas
para acolá, como as memórias, como os velhos amigos, os reais e os dos livros,
como as despedidas, como os chapéus que continham serpentes; afinal, tudo
esperava apenas o momento de redemoinhar.’
Quem
me conhece sabe que tenho um ódio de estimação pelos chavões new age: poucas
frases me irritam mais do que ‘Tudo acontece por uma razão’, e à pergunta de
bolso sobre o meu signo respondo invariavelmente que sou Imperial com
ascendente em Tremoço. E nem a minha história de amor mais longa e
satisfatória, aquela que tenho com os livros, me faz mudar de ideias, apesar de
ser tentador pensar que tudo acontece por uma razão misteriosa quando:
- uma frase lida num livro nos salva da morte
- uma personagem literária é tão, mas tão parecida connosco que temos a sensação incómoda de que ou autor plantou microfones na nossa vida interior
- uma personagem cresce e é feliz mesmo depois de ter cometido a mesmíssima asneira que acabámos de cometer e nos parece irremediável
- um livro responde a perguntas que nunca nos atrevemos a formular em voz alta
Tudo
isto já me aconteceu, e mais do que uma vez. A última foi com Paula, de Isabel
Allende. Comprei o livro nos primórdios do século. Comecei por adiar a leitura
porque sabia que abordava a morte da filha da autora - eu tinha sido mãe em
1999 e não conseguia sequer pensar em abordar aquele tema. Depois li um um
outro livro de Allende em que já não reconheci a autora de A Casa dos
Espíritos, mas a repetição de uma fórmula que se tinha esgotado. Há um mês e
pouco, tive uma emergência matinal: acabara um livro na noite anterior, estava
à pressa para sair de casa e ainda não tinha escolhido a leitura seguinte. (Nota:
sair de casa sem um livro é prenúncio certo de catástrofe.) Assim, abri de
rompante o armário dos LPL – Livros Por Ler -, peguei num às cegas e saí porta
fora. Deu-se o caso de ser Paula, e de retratar ponto por ponto uma situação
que eu estava a viver, e de dar voz também a muitas dúvidas minhas em relação à
escrita.
Foi
verdadeiramente o livro certo no momento certo, mas nada há de místico nisso.
Os amantes da leitura têm sempre as antenas ligadas para tudo o que os livros
lhes possam dizer. Por isso é natural que encontrem neles tantas respostas que
não esperavam. As coisas não estão à nossa espera para acontecer, acontecem e
esperam que demos por elas. É precisamente o que acontece ao protagonista deste
livro, e aos seus mui auspiciosos encontros com a estatuária lisboeta. Enquanto
ele procura naquelas figuras a resposta a uma única pergunta, vai recebendo
lições de vida vindas de todos os lados. Não, não é magia, nem misticismo:
acontece que Sebastião resolveu apenas abrir os braços, os olhos e os ouvidos
ao que o cerca.
É
verdade que tudo acontece por uma razão, mas a razão tem de partir sempre de
nós, não de um universo vago e indiferente. E a vida muda inevitavelmente para
quem decide mesmo mudar de vida.
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