22/03/2015

MUDAR DE VIDA

[a leitura de Dizem que Sebastião por Ana Saragoça

‘… um remoinho arrastava folhas e papéis pelo chão numa coreografia de esperança voadora: afinal, as coisas inertes não o eram, voavam até, vindas dali e voadas para acolá, como as memórias, como os velhos amigos, os reais e os dos livros, como as despedidas, como os chapéus que continham serpentes; afinal, tudo esperava apenas o momento de redemoinhar.’


Quem me conhece sabe que tenho um ódio de estimação pelos chavões new age: poucas frases me irritam mais do que ‘Tudo acontece por uma razão’, e à pergunta de bolso sobre o meu signo respondo invariavelmente que sou Imperial com ascendente em Tremoço. E nem a minha história de amor mais longa e satisfatória, aquela que tenho com os livros, me faz mudar de ideias, apesar de ser tentador pensar que tudo acontece por uma razão misteriosa quando:

  • uma frase lida num livro nos salva da morte
  • uma personagem literária é tão, mas tão parecida connosco que temos a sensação incómoda de que ou autor plantou microfones na nossa vida interior
  • uma personagem cresce e é feliz mesmo depois de ter cometido a mesmíssima asneira que acabámos de cometer e nos parece irremediável
  • um livro responde a perguntas que nunca nos atrevemos a formular em voz alta

Tudo isto já me aconteceu, e mais do que uma vez. A última foi com Paula, de Isabel Allende. Comprei o livro nos primórdios do século. Comecei por adiar a leitura porque sabia que abordava a morte da filha da autora - eu tinha sido mãe em 1999 e não conseguia sequer pensar em abordar aquele tema. Depois li um um outro livro de Allende em que já não reconheci a autora de A Casa dos Espíritos, mas a repetição de uma fórmula que se tinha esgotado. Há um mês e pouco, tive uma emergência matinal: acabara um livro na noite anterior, estava à pressa para sair de casa e ainda não tinha escolhido a leitura seguinte. (Nota: sair de casa sem um livro é prenúncio certo de catástrofe.) Assim, abri de rompante o armário dos LPL – Livros Por Ler -, peguei num às cegas e saí porta fora. Deu-se o caso de ser Paula, e de retratar ponto por ponto uma situação que eu estava a viver, e de dar voz também a muitas dúvidas minhas em relação à escrita.

Foi verdadeiramente o livro certo no momento certo, mas nada há de místico nisso. Os amantes da leitura têm sempre as antenas ligadas para tudo o que os livros lhes possam dizer. Por isso é natural que encontrem neles tantas respostas que não esperavam. As coisas não estão à nossa espera para acontecer, acontecem e esperam que demos por elas. É precisamente o que acontece ao protagonista deste livro, e aos seus mui auspiciosos encontros com a estatuária lisboeta. Enquanto ele procura naquelas figuras a resposta a uma única pergunta, vai recebendo lições de vida vindas de todos os lados. Não, não é magia, nem misticismo: acontece que Sebastião resolveu apenas abrir os braços, os olhos e os ouvidos ao que o cerca.

É verdade que tudo acontece por uma razão, mas a razão tem de partir sempre de nós, não de um universo vago e indiferente. E a vida muda inevitavelmente para quem decide mesmo mudar de vida.  
    

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