15/05/2014

uma coisa sem importância aparente

[texto: Paulo M. Morais / fotografia: Porto Editora]

"Cumprimentámo-nos, passando a ser dois a tentar, numa cumplicidade instantânea, abrir o chapéu. Perguntar-me-ão, porquê contar isto, este pequeno episódio sem importância, duas pessoas acabam de se conhecer e imediatamente se dedicam a um objectivo comum, o de abrir um chapéu-de-sol encravado, numa displicente sintonia? Dir-vos-ei – isso, sim, é a minha única certeza – que as coisas sem importância aparente, quase irrelevantes no castelo de cartas das nossas vidas, são aquelas que têm um verdadeiro significado. Naturalmente, só nos apercebemos disso mais tarde, reflectindo um pouco sobre os acontecimentos.
Pois eis: duas pessoas, dois desconhecidos, atrapalhados num gesto inócuo, rindo da sua inabilidade, e isso revela, gostaram logo um do outro, quiseram agradar-se, não por pura cortesia, mas porque necessitaram, na primeira impressão, de dizer um ao outro quem eram." 
Os Olhos de Tirésias (pág. 21)


As páginas de «Os Olhos de Tirésias» prestam-se à citação, esse exercício de extirpar pedaços que, por si só, conseguem representar um todo. Mas agora em que tenho de escolher uma passagem (e por querer escolher somente uma única passagem), não poderia ter escolhido outra que não esta a falar-me das “coisas sem importância aparente”. Primeiro porque me revela um modo diferente de olhar para o mundo. Sim, é isso mesmo: o castelo de cartas da nossa vida é feito de gestos aparentemente inócuos.



Mas existe outra razão para a minha escolha. É que eu vivi esta descrição quando, na Feira do Livro de Lisboa (2013), eu e a Cristina nos sentámos frente a frente para crescermos de um conhecimento "virtual" para um conhecimento "real". Não havia preocupação em agradar ao outro (já chegámos àquela idade em que não se forjam elos por frete ou obrigação), mas a verdade é que nos rimos das nossas inabilidades. Ao início da tarde troçámos de eu estar sentado numa poltrona jactante, “feito escritor” rodeado de escritores, a autografar um «Revolução Paraíso» para a futura leitora Cristina. E, no final da tarde, troçámos de ela estar sentada numa cadeira periclitante, “feita escritora” rodeada de escritores, a assinar um «Os Olhos de Tirésias» para o futuro leitor Paulo. Não éramos desconhecidos, mas posso afirmar que naquela tarde selámos a amizade anteriormente prenunciada, talvez por lermos um no outro que estávamos sob o mesmo guarda-sol encravado, a tentar escapar das mesmas cargas de água. E, sem que então o soubéssemos, talvez tenha nascido ali a semente NAU.

Após o nosso encontro, faltava a sintonia de abrir o livro autografado e gostar do que lá estava escrito. Tirésias é um romance feito para ler na solidão da noite, aconchegado por uma manta, a imaginar o crepitar duma lareira. Aquelas palavras rejeitam a confusão. Pedem silêncio e tempo. Não sentimos pressa por tragar páginas; sentimos vontade de fazer perdurar o prazer da leitura. Exactamente como me acontece com a Cristina, onde encontro uma amizade rara, daquelas para saborear ao longo dos dias, semanas, meses, anos, desfrutando serenamente da sorte que foi termo-nos cruzado por causa dos nossos livros e de, num riso partilhado sobre as nossas inseguranças e certezas, termos mostrado um ao outro quem éramos.

Quando leio a Cristina Drios, reconheço uma escritora. E quando ela me lê, faz-me acreditar que sou um escritor. Por isso, nem que seja entre nós, talvez o sejamos mesmo.

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