15/07/2014

Indisponível para morrer

[Sónia Alcaso e a leitura de «Todos os Dias são Meus»]

Sempre acreditei que o universo de um bom livro nos persegue por muito tempo. Ora eu li o livro da Ana Saragoça há cerca de dois meses e sempre que passo nas minhas escadas, pela porta dos meus vizinhos (têm qualquer coisa de estranho...) lá volta ele - o  mundo que a Ana tão bem criou. Um mundo que envolve tudo o que no comportamento dos seres humanos parece absurdo, injusto, grandioso, cheio de coragem ou cobardia; uma história que acontece acima e abaixo da aparência do acontecer, como se a vítima, afinal, se tenha declarado indisponível para morrer. À volta dela, gravitam personagens que nos deixam adivinhar as vidas, que escutamos mesmo sem querer, que vamos entendendo com o adensar do mistério. Como num filme. Por vezes cómico, por vezes trágico.
Um livro que, mais do que se lê, se vive sofregamente.


«Suponho que há sempre uma altura na vida em que tentamos fazer parte de um grupo, ser “normais”. Os únicos modelos de comportamento que eu respeitava eram os que me tinham sido transmitidos pelos livros. Eu lia tudo o que me vinha parar à mão, portanto tinha muitos modelos à escolha, e tentei seguir alguns. E foi aí que se deu o meu grande choque com a realidade. Nos livros, mesmo nos mais “experimentais”, as personagens têm sempre alguma coerência. Uma personagem que faz “isto” não pode fazer “aquilo”, e se faz “aqueloutro”, naturalmente fará “algoutro”. Na vida as pessoas são tudo menos coerentes e conseguiram surpreender-me sempre – pela negativa. Os livros existem porque alguém concebeu uma intriga com princípio, meio e fim, com peripécias e um desenlace. A vida real pode arrastar-se indefinidamente por intrigas mesquinhas, completamente desprovidas de interesse, e sem outro fim à vista que não a morte.»
Todos os Dias são Meus (pág.59/60)

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