Houve de tudo nas leituras dos marujos do Colectivo Nau do livro do mês, «O Intrínseco de Manolo». A Raquel Serejo Martins pediu à Consuelo que a consolasse, a Cristina Drios confessou que gostaria muito de ser uma lágrima Marília, a Ana Saragoça encontrou o "alentejanismo mágico" do livro, a Carla M. Soares andou à volta do que podia Manolo (e podia muito...), o Paulo M. Morais perdeu as estribeiras e mandou o João fornicar-se...
E lá foi o João Rebocho Pais submeter-se a 20 confissões proustianas, escutar o poema da Raquel Serejo Martins intitulado Intrínseco João, e sujeitar-se a que a Sónia Alcaso lhe traçasse o perfil de "homem inteiro, cheio de jogos (e) de palavras".
Um mês cheio, em volta de um só livro. Um não, que enquanto falávamos do primeiro filho literário do João, ele estava a lançar o seu segundo, «Dizem que Sebastião». É de ir lá ver o que nos dizem, então, enquanto agradecemos ao nosso timoneiro a viagem intrínseca por Manolo e companhia.
A paixão pela literatura a unir oito novos autores portugueses. Somos o Cole©tivo NAU – Novos Autores Unidos. Embarquem connosco nesta viagem por livros e palavras.
30/06/2014
24/06/2014
Consola-me Consuelo
[Raquel Serejo Martins e a leitura de «O Intrínseco de Manolo»]
O vinho, como a cerveja e tudo o mais por ali, era de boa qualidade, ainda que servido sem grandes alardes de higiene. A clientela era menos de olhar a mariquices dessas e mais de se servir do vasto cardápio de luxúria e javardice; não era, pois, sítio de se ter sol na eira e chuva no nabal, ou há finezas ou imoralidades, e havia muito que Consuelo optara por comércio destas, e a verdade é que em terra assim não se safaria tão bem noutras artes ou negócios.
O Intrínseco de Manolo (Pág. 59)
O que eu gostei neste livro: o intrínseco.
O intrínseco de Manolo, o intrínseco das restantes personagens, o intrínseco de Lugar de Cousa Vã, o intrínseco de Ciudad del Sol.
E este parágrafo serve-me de exemplo perfeito para ilustrar (puxar o lustro!) ao que estou a tentar explicar, sem muito desvendar, serve para constatar a impossibilidade de ter sol na eira e chuva no nabal ou, com mais um passo, ou há finezas ou há imoralidades.
E na procura do intrínseco o autor devasta as personagens até ao osso, para mostrar, desvendar, caso a caso, os defeitos de que são feitas.
Assim, a cada personagem o que lhe é intrínseco, a realidade para lá das aparências, a balança em desequilíbrio entre o bom e o mau, as minudências, o quotidiano, as certezas, as dúvidas, o prazer, o tédio.
Por fim, e sobretudo, o que gostei neste livro, o que me consolou como leitora: o esmero da linguagem.
Fernando Pessoa escreveu: A minha pátria é a língua portuguesa, e pela língua, desde o princípio da leitura, este autor faz-nos, se não alentejanos de nascença, pelo menos residentes desde sempre.
"Retrato de Fernando Pessoa", de Almada Negreiros |
19/06/2014
ser apenas lágrima
[Cristina Drios e a leitura de «O Intrínseco de Manolo»]
“Marília adormece só, como só se recordava gente desde sempre, passam as horas e ninguém lhe nota a falta, e ela a de ninguém também. Escorre-lhe água pela face, são centenas, milhares de gotas as que naquela noite lhe lavam cara e alma, e é quando Marília sente a estranheza do calor de uma lágrima e, perplexa, recorda todos os momentos em que, pulando-lhe o coração, se sentiu alguém e feliz, que entende que nunca ninguém a entenderá. E é nessa lágrima final que se deixa morrer de vez no mundo dos lúcidos e parte na lucidez do mundo dos loucos.”
O Intrínseco de Manolo (pág. 81)
Marília pouco se dá a nós, leitores, e, no entanto, seria, para mim, personagem de solidão e vazio, como se, feita de ar, flutuasse acima da realidade, da imundice e da pulhice que grassam em Cousa Vã, e nem sequer conseguisse ser beliscada por elas, merecedora de um livro inteiro. “Só, como só se recordava gente desde sempre”: como todas as grandes personagens carrega com dignidade o fardo da condição humana enquanto, ao mesmo tempo, é a antítese de tudo o que há de porco, feio e mau, de terreno, físico e suado, noutras personagens do romance. A lágrima quente que lhe desce pelo rosto já foi chorada por santos, por loucos e por nós, leitores. Todos somos, desse modo, um pouco Marília. Eu muito gostaria de ser apenas lágrima.
"Summer Interior", de Edward Hopper |
“E é aqui que nós paramos e ficamos também, com Marília e o seu mundo cheio de horas completas e momentos vazios, descobrindo, abismados, a magnitude da mediocridade das gentes de fácil julgamento.”
17/06/2014
o alentejanismo mágico
[Ana Saragoça e a leitura de «O Intrínseco de Manolo»]
“E de repente surgiu a azinheira, logo uma azinheira cuja silhueta nunca houvera afinal visto com olhos de gente, e nela estava uma carta pregada, e nela estava a algazarra da fúria e da mansidão, da cobardia dos ignorantes, e na sua sombra queria Manolo descansar, mas agitado era seu sono e sentiu apenas uma lágrima a acordá-lo; sentiu-se perdido e vivo como nunca antes experimentara e ouvia agora, vagamente mas ouvia, chamar seu nome ao longe, muito longe, e perdido estranhava o lugar, tão perdido quanto sonho quis que tudo fosse, até que olhou para a porta e ouviu:
- Porque choras, homem?”
O Intrínseco de Manolo (pág. 36)
Alentejana dos quatro costados, logo me saltou à vista que o Alentejo de Manolo não era o Alentejo que conhecemos nós, os de lá, nem os que aprenderam a conhecê-lo através da muita literatura neo-realista. Neste retalhinho à beira-mar plantado, o Alentejo é o sonho dos citadinos, com as suas planícies imensas e o silêncio tão difícil de encontrar alhures.
Mas quer parecer-me que o João Rebocho Pais nunca pretendeu retratar um Alentejo real, nem gentes reais. Precisava de um cenário onde expandir uma galeria de excêntricas personagens, primando quase todas, de um modo ou de outro, por possuírem uma sexualidade descabelada, fosse pela bizarria ou pela dimensão dos apetites ou por ambas, que isto de comer e coçar tudo vai de começar. E tenho para mim que Cousa Vã foi parar ao Alentejo, porque só lá se podia encontrar a âncora que impede toda aquela nave de loucos de disparar galáxia fora em cavalgadas desbragadas, hilariantes e não raro comoventes a ponto de ainda poderem perturbar o sossego das estrelas. Essa âncora era a azinheira de Manolo. O seu a bem dizer intrínseco.
E foi graças a essa azinheira e a toda a trapalhada de gente e de acontecimentos a reboque dela que nasceu o alentejanismo mágico™ de João Rebocho Pais. A planície merece e esta leitora agradece.
15/06/2014
20 confissões proustianas de João Rebocho Pais
A minha ideia de perfeita felicidade:
Ver os meus Filhos felizes e o Benfica campeão.
A característica que mais me desagrada nos outros:
Demagogia
A pessoa viva que mais admiro:
Elvira
A minha qualidade preferida num homem:
A capacidade de viver uma Amizade
A minha qualidade preferida numa mulher:
A capacidade de entender o Homem
As palavras ou frases que uso em demasia:
' A verdade é que ... '
' Foda-se '...
Quem ou o quê é o grande amor da minha vida:
Miguel e Francisco
Quando e onde fui mais feliz:
16 de Novembro de 1994 e 9 de Junho de 2003... em Lisboa
O talento que mais gostaria de ter:
Saber tocar música
O que considero o meu maior feito:
Ter sabido rodear-me de poucos mas Bons Amigos
Onde gostaria mais de viver:
Em Estocolmo, se houvesse por lá Benfica
O meu bem mais precioso:
Os meus Filhos
O que é para mim atingir o fundo:
Necessitar de pisar os outros para saber viver
A minha ocupação preferida:
Ler
A minha característica mais vincada:
Teimoso
O que valorizo mais nos meus amigos:
A disponibilidade nos dias em que ' é preciso estar lá '
Os meus escritores preferidos:
José Saramago, Sandor Marai.
Os meus nomes preferidos:
Miguel; Francisco; Inês
O que mais me desagrada:
Gente mentirosa
O meu lema:
Nunca desistas.
Ver os meus Filhos felizes e o Benfica campeão.
A característica que mais me desagrada nos outros:
Demagogia
A pessoa viva que mais admiro:
Elvira
A minha qualidade preferida num homem:
A capacidade de viver uma Amizade
A minha qualidade preferida numa mulher:
A capacidade de entender o Homem
As palavras ou frases que uso em demasia:
' A verdade é que ... '
' Foda-se '...
Quem ou o quê é o grande amor da minha vida:
Miguel e Francisco
a Lisboa do Benfica imagem: Paulo M. Morais |
16 de Novembro de 1994 e 9 de Junho de 2003... em Lisboa
O talento que mais gostaria de ter:
Saber tocar música
O que considero o meu maior feito:
Ter sabido rodear-me de poucos mas Bons Amigos
Onde gostaria mais de viver:
Em Estocolmo, se houvesse por lá Benfica
O meu bem mais precioso:
Os meus Filhos
O que é para mim atingir o fundo:
Necessitar de pisar os outros para saber viver
A minha ocupação preferida:
Ler
A minha característica mais vincada:
Teimoso
O que valorizo mais nos meus amigos:
A disponibilidade nos dias em que ' é preciso estar lá '
Os meus escritores preferidos:
José Saramago, Sandor Marai.
Os meus nomes preferidos:
Miguel; Francisco; Inês
O que mais me desagrada:
Gente mentirosa
O meu lema:
Nunca desistas.
12/06/2014
Pudesse Manolo. E pode.
[Carla M. Soares e a leitura de «O Intrínseco de Manolo»]
Pudesse Manolo, e em Cousa Vã só veria mesa e cama e o corpo maduro da sua Maria, depois que lhe calhou ter dinheiro no bolso e nenhuma preocupação senão (re)descobrir os recessos e suores e prazeres do leito conjugal. Pudesse Tonho, e não haveria chouriço nacional que lhe chegasse para os recém descobertos apetites, enquanto Tina, pudesse ela, de feira em feira testaria com igual prazer cuequinhas e feirantes. Arnaldo, pudesse, fingir-se-ia homem de negócios nos negócios fingidos que conhece, desconhecidos de Marília, perdida em si e nos pássaros que a entendem. Alberto, que em terra de cego tem olho e se fez rei, ou quase, pudesse escaparia da porcaria que, porque pode, Idalina deixa tomá-la de prazer – no corpo e na casa, cama e cozinha em orgásmica imundice. Pudessem eles.
Pois podem, em Cousa Vã, com essa letra e com outra. E muito. Algures no intrínseco de Manolo, Manolo a personagem, há tesão pelo corpo de Maria e pela vida. É de amor a história, sem pejo de reconhecê-lo, traduzida em cavalgadas inesperadas no corpo um do outro e em descobertas que idade e hábito já não faziam suspeitar.
"Não lembrava a última vez que, olhos nos olhos e com verdade e perdição, na intimidade escondida das pessoas que nada devem ou temem, escorregara suor pelo mistério de tremuras que lhe dava aquela mulher. Com cheiros, risos e carnes que em mais nenhum poderia haver, cego de paixão e entrega que escondera ao mundo por temor da retaliação à sua condição de macho maduro. Bigodes, vinho e porrada muitos, merdas amaricadas daquelas é que não, pensava. Ou achava que pensava. Ou pensava-se, ou calhando nem tal. O duche, à laia e imagem da azinheira, sulcava caminho, deixava pistas e desenhava momentos." (p.23)
Outros tesões livro fora são de resolver em camas e fora delas, assunto de carnes e cheiros, de texturas e prazeres, coisas da terra que a quem lê arrancam gargalhadas e fazem franzir o sobrolho, na elegância pícara ou na brejeirice com que por vezes nos apanham de surpresa. Cuidado, vós homens, e não tiverdes cuidado, ainda vos vedes tomados num canto qualquer de uma página por Tina, que “atrás de Zé Colmeia vieram umas dezenas mais de parceiros em trotes selvagens, outros Zés, Manéis, Antónios, Alfredos e por aí fora; é mesmo possível que em tanto nome não haja letra do alfabeto que tivesse escapado à sanha persecutória daquele buraco fulminante.” (pág. 69)
É das coisas pequenas de aldeia, dos diz-que-disse, dos arremedos de vizinhança, das culpas e dos perdões implícitos de quem pertence, apenas porque é Cousavanense. E é de magia, também, a magia pequena e infinda da terra, de azinheiras que são mulheres na voz e se desdobram no consolo nos momentos negros da alma. “Os primeiros dias, as primeiras semanas, haviam sido um retiro de dar dó. Por mais que se esforçasse a velha árvore, por mais que convocasse os deuses e todos os servos da terra, nada mais conseguira do que esbarrar no silêncio de um homem perdido. Cobria-o com a sua sombra, afagava-o em noites frias. Cantava-lhe coisas junto com o vento, dançava para ele com seus ramos e folhas. E nada. Nada de Manolo.” (pág.162)
Eros e Psique, de Jacques-Louis David imagem: Wikipedia |
10/06/2014
Intrínseco João
[poema de Raquel Serejo Martins, inspirado em «O Intrínseco de Manolo»]
João Rebocho Pais
é dos Olivais,
e parece-me que estou a vê-lo
de fisga na infância atrás de pardais.
Atrás de pardais, atrás de uma bola,
o golo na baliza,
no recreio da escola.
E ser dos Olivais é ser do mundo,
o prédio, a rua, o bairro, a lua ao fundo,
talvez por isso seja o Manolo do seu livro
tão meditabundo,
quando à sombra da sua azinheira,
raízes em lugar de Cousa Vã,
folhas ou pensamentos inquietos
e confidências de pássaros no vai e vem das estações.
Do João os dias também de pássaro,
asas de metal, bico afiado em voo contrapicado,
um comissário de bordo, um ser alado.
Leva saudades do chão e um recado,
não sei se gosta de fado!
Sei que prende as lágrimas aos olhos,
não é piegas e não prende,
quando ouve Cat Stevens,
e eu vou arriscar, sem cantar:
I was a child
Who ran full of laughter
My eyes full of sunshine
My heart full of smiles
Sem dúvidas, sei que gosta de futebol,
se Saramago de chuteiras, um Maradona,
digo, por dizer que são dois monstros de bons.
E no coração o seu Benfica,
dois livros,
dois filhos,
duas mulheres,
da Suécia com amor.
Mas do João, sobretudo o sorriso.
Sólido, redondo, brilhante!
Medalha merecida ao peito,
lugar no pódio,
por me lembrar um menino
que aposto era o capitão da rua.
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08/06/2014
perfil de João Rebocho Pais
[texto de Sónia Alcaso; imagens 'gloriosas' cedidas pelo João Rebocho Pais]
João
Rebocho Pais é um
homem inteiro, cheio de jogos (e) de palavras. Desses, com força para sondar as
palavras, as dominar e chutar, certeiramente. Sim, falo da escrita e também desse desporto
que move paixões,
porque a literatura também
pode ser comparada com a seriedade imensa de um jogo de futebol. Um jogo onde
cada vitória e
derrota do Benfica é vivida
de uma maneira intrínseca
por João, mas
também por
cada um dos benfiquistas. Não
apenas aquilo que se passa dentro das quatro linhas; mas também a partilha. Parte de um povo em uníssono, a deixar-se
unir pelo mesmo sentimento, a mesma crença,
a mesma cor, as mesmas alegrias, as mesmas tristezas. Como na literatura. Dois
olhos a mais ou a menos fazem toda a diferença.
Escreve-se para os outros. Quem sabe, um dia, com os outros?
Duas paixões
na vida de João
- os livros e o Benfica -, somadas a outras tantas, com as maiores nos filhos,
Francisco e Miguel, e as restantes nos prazeres à
volta, como a simples contemplação
de uma árvore
ou uma estátua.
É assim, João Rebocho Pais:
feito de sorrisos desarmantes e olhos divertidos de quem acabou de pregar uma
partida ao mundo. Ou foi o mundo que te pregou uma partida a ti?
O escritor surgiu por acaso; o comissário de bordo também. Mas tanto pega
nas malas (mesmo que se tornem pesadas), como nas canetas, que, nos dias que
correm, também
já não são penas.
Hoje é
um escritor com dois livros publicados. O primeiro, "O intrínseco de
Manolo", surgiu inesperadamente, por um decisivo e milagroso acaso. O
segundo, "Dizem que Sebastião",
foi natural, o esperado de uma voz original, cheia de humor, que disfarça a crueza da vida
e que se quer ouvir. O caminho é
bonito e apetece.
João
é um escritor
obstinado, leal às
amizades e, sobretudo, a si próprio.
Um escritor que não
cruza os braços,
antes pelo contrário,
transforma-os rapidamente em asas e leva os seus livros às nuvens. Essas, que estão mesmo a seguir às janelas dos aviões.
Escreve histórias
de amor, mas também
de solidão, de
personagens que redescobrem a essência
da vida. Mesmo que seja no seu ocaso. O importante é deixar a alma, serena, voar feliz
como os pássaros
que se interrogam sobre os humanos. Como é
que se consegue essa leveza, João?
Relativizando o que pouco ou nada interessa. Ter a consciência de que viver é uma graça da natureza.
Parece fácil,
mas não é. Lendo João Rebocho Pais,
talvez o consigamos aprender. Pelo menos o suficiente para que neles, nos seus
livros, fiquemos. Ou para que eles fiquem dentro de nós.
"Cousa Vã
guardara lugar em sua vida, habitava um espaço importante como o são todos os que nos
ocupam a mente, que nos trazem tesouros que sabemos guardar, isso confessava
Manolo à árvore,
com ela dividindo a vez de regressar a esse tempo, trazendo histórias de tantos dias
passados, partilhados, onde haviam aprendido a cumplicidade que os unia. Manolo
envelhecia, e isso a árvore
ia percebendo, aumentando-lhe a sombra, para que assim com ela descansasse
sossegado. E, ainda que vivendo mil anos, era árvore
velha também."
O Intrínseco de Manolo (pág.170)
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05/06/2014
olha, João, e se te fosses...
[Paulo M. Morais e a leitura de «O
Intrínseco de Manolo»]
«E reviveram montes e vales, grutas
e fados cantados, incendiou-se Lisboa por ali, e veio outro terramoto, este sem
mortos nem marqueses, se bem que a gritaria calada por pudor nos fizesse
adivinhar, a todos nós que não estivemos lá, que Manolo e Maria estavam de novo
possuídos, nus, encharcados e gozando-se em sua estuporada simplicidade.»
O Intrínseco de Manolo (pag. 57)
Coro ao ler o livro do João Rebocho Pais. Não propriamente
por pudor, mas pela raiva do bem que ele descreve uma das coisas mais difíceis
da literatura: dois amantes a acasalarem. Viram a diferença entre nós os dois?
Acasalarem é linguagem de aula de ciências, onde se mostra como os coelhos
fazem coelhinhos. É preciso um “toque” especial para descrever o acto do amor
(mais outra definição para ir direitinha para o lixo...), para acertar em
palavras os cheiros, dimensões, particularidades dos corpos nus. É preciso um
dom para descrever o que eles fazem na cama (zás! mais um lugar-comum para mim).
Coro ao ler o livro do João Rebocho Pais. Porque os preliminares
estão obscenamente bem escritos, enleando-nos num jogo de palavras maviosas que
depois desembocam numa torrente orgástica (combinado, deixo de fazer
trocadilhos de índole sexual) que nos surpreende e abana. O João testa e
estilhaça os limites de como se fala de sexo num romance sem o tornar boçal e
abandalhado. E irrita a classe com que o faz, através de frases aperaltadas de casaco
e gravata, mas sem calças. E sem cuecas. No uso do palavrão, o João Rebocho
Pais parece-se assim à Tina: «Fodilhona, claro, mas avisada e poupadinha.» (pág.
128)
Temos aqui escritor capaz de proezas à altura de A Casa dos Budas Ditosos. E aí, coitado,
o João é bem capaz de poder deixar de sair à rua. É que se não forem as fãs a
dar cabo dele, serei eu, corado da cabeça aos pés. Porque a mim nem forçado me
sai a maneira como gostava de acabar este texto. Vou ter de pedir ajuda ao Manolo. E é sob a sombra e protecção do teu personagem que digo isto:
Olha, João, e se te fosses foder por escreveres tão bem uma foda?
03/06/2014
livro do mês: O Intrínseco de Manolo
João Rebocho Pais assume o posto de timoneiro do Colectivo NAU no mês de Junho. O livro em destaque será «O Intrínseco de Manolo», já em segunda edição. É verdade que o João já tem um livro novo nas livrarias. Mas seria uma pena perder-se a oportunidade de acompanhar a viagem de um novo autor desde o início. Assim, quem ler e gostar deste Manolo poderá seguir rapidamente para o acabado de sair «Dizem que Sebastião». Começamos com a sinopse, mas aguarde-se um perfil, as citações e comentários dos restantes marujos, as confissões proustianas, e o que mais surja espontaneamente. Boas navegações!
O Intrínseco de Manolo
romance (2012, Teorema)
sinopse
Na aldeia alentejana de Cousa Vã - vizinha da espanhola Ciudad del Sol - o nome de Manolo anda nas bocas escancaradas dos que passam as tardes na tasca a aviar minis, quiçá para que ninguém repare no que realmente se passa em suas casas - e talvez seja melhor assim. É, porém, facto indesmentível que Maria tem o hábito de desaparecer às sextas-feiras - e isso basta para que a mediocridade omnipresente faça do marido um adornado e da chacota um estranho alívio para a dureza dos dias. Manolo refugia-se do falatório acusador à sombra de uma azinheira secular, único ser vivo com quem pode dividir agora as suas mágoas; e, embora certo da virtude da sua Maria, não ignora a missiva que o carteiro lhe deixou em casa nessa manhã e que trazia - pois é - remetente espanhol… No jogo repetido que é o dia-a-dia dos lugares pequenos - onde ninguém ganha e quase todos perdem -, a descoberta da improvável verdade trará, mesmo assim, a Manolo a oportunidade de mostrar aos conterrâneos, de forma anónima, o seu intrínseco, seguindo os ensinamentos dos que, sendo velhos ou já desaparecidos, são parte importante da sua história - e da de Cousa Vã. Com um trabalho notável na composição das figuras e uma recuperação inteligente da linguagem popular de um Alentejo quase mítico, João Rebocho Pais estreia-se na ficção com um romance terno, mágico e, ocasionalmente, escatológico sobre o poder da excepção sobre a regra.
O Intrínseco de Manolo
romance (2012, Teorema)
João Rebocho Pais
sinopse
Na aldeia alentejana de Cousa Vã - vizinha da espanhola Ciudad del Sol - o nome de Manolo anda nas bocas escancaradas dos que passam as tardes na tasca a aviar minis, quiçá para que ninguém repare no que realmente se passa em suas casas - e talvez seja melhor assim. É, porém, facto indesmentível que Maria tem o hábito de desaparecer às sextas-feiras - e isso basta para que a mediocridade omnipresente faça do marido um adornado e da chacota um estranho alívio para a dureza dos dias. Manolo refugia-se do falatório acusador à sombra de uma azinheira secular, único ser vivo com quem pode dividir agora as suas mágoas; e, embora certo da virtude da sua Maria, não ignora a missiva que o carteiro lhe deixou em casa nessa manhã e que trazia - pois é - remetente espanhol… No jogo repetido que é o dia-a-dia dos lugares pequenos - onde ninguém ganha e quase todos perdem -, a descoberta da improvável verdade trará, mesmo assim, a Manolo a oportunidade de mostrar aos conterrâneos, de forma anónima, o seu intrínseco, seguindo os ensinamentos dos que, sendo velhos ou já desaparecidos, são parte importante da sua história - e da de Cousa Vã. Com um trabalho notável na composição das figuras e uma recuperação inteligente da linguagem popular de um Alentejo quase mítico, João Rebocho Pais estreia-se na ficção com um romance terno, mágico e, ocasionalmente, escatológico sobre o poder da excepção sobre a regra.
a viagem da timoneira Cristina Drios
Na passagem de testemunho, relembramos a viagem da timoneira Cristina Drios.
Tudo começou, literalmente, com a crónica sobre o primeiro jantar NAU. Depois houve um perfil traçado pela Raquel Serejo Martins, citações e comentários feitos pelas marujas Carla M. Soares (um rapaz com gosto por coelhos no chapéu), Sónia Alcaso (o medo e a solidão da guerra), Ana Saragoça (o espaço físico da tradutora), uma evocação do Paulo M. Morais (uma coisa sem importância aparente), um poema da Raquel Serejo Martins inspirado em «Os Olhos de Tirésias», e as respostas da timoneira ao questionário de Proust. Pelo meio, a Cristina ainda teve tempo de ir a França participar no Festival do Primeiro Romance de Chambéry, o que nos encheu de orgulho.
Resta-nos agradecer ao Mateus Mateus e restantes personagens criados pela Cristina Drios, por nos terem proporcionado uma belíssima primeira viagem do Colectivo NAU.
Festival du Premier Roman de Chambéry imagem: Arlette Darbord |
Resta-nos agradecer ao Mateus Mateus e restantes personagens criados pela Cristina Drios, por nos terem proporcionado uma belíssima primeira viagem do Colectivo NAU.
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