31/07/2014

NAU no estaleiro

Em Agosto, conforme previsto na nossa "carta de marear", o Colectivo NAU vai para o estaleiro. Após o descanso, voltaremos em Setembro com vontade de termos meses tão gratificantes como estes em que escrevemos sobre os livros da Cristina Drios ("Os Olhos de Tirédias"), do João Rebocho Pais ("O Intrínseco de Manolo") e da Ana Saragoça ("Todos os Dias São Meus"). Até lá, um abraço para os nossos seguidores e leitores. Fiquem bem. E leiam, leiam muito.

a viagem da timoneira Ana Saragoça

Terceiro mês de navegação do Colectivo NAU, terceiro livro. A viagem de «Todos os Dias São Meus» foi bem recheada. O perfil da autora - e timoneira de Julho - Ana Saragoça esteve a cargo da Carla M. Soares. Depois, a Cristina Drios encontrou a cura pela literatura, o Pedro Almeida Maia ficou algemado pela Ana, o Paulo M. Morais lembrou-se de coisas da vida, o João Rebocho Pais enrolou-se em trambolhões, a Carla M. Soares esteve no bailarico com o pequeno romance, a Sónia Alcaso apontou que o livro se mostrava indisponível para morrer e a Raquel Serejo Martins fez uma soma de pequenos nadas.

A timoneira, como se não bastasse o trabalho de ter escrito o seu livro, aplicou-se a responder ao questionário de Proust e depois ainda nos deu um texto intitulado 'Todos os Dias' nos dias da minha vida. Obrigado por esta magnífica navegação, Ana!

O Julho da NAU ficou também assinalado pelo segundo jantar do Colectivo, que a Carla M. Soares cronicou, e por um encontro entre os leitores da Roda dos Livros e alguns marujos, que a Márcia Balsas referiu no seu blogue Fugir para Ler. E ainda tivemos o lançamento do segundo livro do João Rebocho Pais, "Dizem que Sebastião". Mês cheio este. Cheio de belos momentos.

30/07/2014

‘Todos os Dias' nos dias da minha vida

[a autora Ana Saragoça sobre o seu «Todos os Dias São Meus»]

Tenho um amigo que diz: ‘Nunca conheci uma alentejana que não fosse acelerada’. E quem passe um dia que seja numa localidade alentejana verá que o mulherio anda sempre numa fona. Quando lá passo uns dias, a casa dos meus pais é visitada por imensas primas e amigas que estão sempre a caminho de fazer alguma coisa. A minha prima Maria Joaquina, de 80 e muitos anos, está no lar da terceira idade, sim senhora, mas para não se aborrecer tira e põe as mesas e descasca todas as batatas que lhe puserem na frente, ‘eu tenho lá vida para ficar a olhar para as paredes, filha’. 

Eu herdei a feminina aceleração alentejana, mas infelizmente alio-a a uma forte dispersão. Sou desorganizada, e tenho sérios problemas em acabar o que começo, a não ser que tenha um prazo a ladrar-me às canelas. 

Comecei a escrever Todos os Dias São Meus em 2001. Estava deprimidíssima, a profissão para a qual estudara e a que me tinha dedicado de corpo e alma já não me queria. Tinha feito uma pausa no teatro para ter um filho e, no momento em que o fiz, deu-se o boom da ficção televisiva, do qual perdi o comboio. Com trinta e quatro anos, era muito nova para fazer de velha, e muito velha para fazer de nova – na época eram as únicas faixas etárias admissíveis, hoje felizmente isso mudou, mas tarde demais para mim. 

Uma noite recordei em sonhos o cão de uma amiga que vomitava sempre que entrava num elevador. Só que no meu sonho aparecia também a minha então vizinha do rés-do-chão, uma megera metediça. Acordei, sentei-me ao computador e nasceu a Porteira que abre o livro. E mais algumas personagens.

E entretanto meteu-se a vida. Precisava de me reformular profissionalmente e dediquei-me ao ofício que sempre exercera a par do de actriz, a tradução. E aí há sempre prazos a ladrar-nos às canelas, sempre. A história que tinha começado e que na minha cabeça já completara até à última frase não tinha pretensões caninas, portanto foi dormir numa disquete. 

Em 2010 reencontrei um grande amigo de juventude, que nos idos de 80 me tinha influenciado tremendamente as leituras. Ao ler o seu blog, lembrei-me de repente da minha história adormecida. A medo enviei-lha, e em resposta recebi a ordem de a terminar. Agora tinha uma voz imperiosa a pressionar-me, e outros olhos que não os meus tinham lido o que escrevera, portanto fiz de conta que tinha um prazo a ladrar-me às canelas e terminei-o. 

Saiu-me pequenino como era o meu filho ao nascer, um coelhito esfolado de dois quilos e seiscentos que ficava a nadar em todos os babygrows. Mas, tal como o meu filho, achei-o composto e consegui deitá-lo ao mundo. 

Demorei 11 anos a produzir 100 páginas. No ano seguinte, com um prazo a ladrar-me às canelas – um ladrido simpático mas exigente – produzi um livro com muitas mais. 

Leio com inveja sobre as rotinas de escrita dos autores que mais admiro, e em todos encontro uma linha comum: a disciplina. Ou isso ou são mentirosos, também pode acontecer. Mas a verdade é que escreveram e escrevem e publicam livros fantásticos. E eu continuo a tentar convencer-me a fazer todos os meus dias dias de escrita, mas deixo a vida entrar por todos os lados e lá se vão as boas intenções. Alguém me ladre às canelas, por favor, porque escrever e ser lida é para mim uma felicidade incomparável. 

29/07/2014

Enrolado aos trambolhões

[João Rebocho Pais e a leitura de «Todos os dias São Meus»]

«No colégio havia uma empregada alentejana. Passava a vida a falar na terra dela. Vila Nova da Baronia. Eu, que não fui nunca de lugar nenhum, invejava aquele pertencer tanto a algum sítio. O nome da vila punha-me logo a ver muralhas numa planície amarela.
Santa Águeda curada por S. Pedro na prisão,
de Giovanni Martinelli
Um dia, depois das férias da Páscoa, ela voltou com fotografias da terra. Muralhas, nem vê-las. Mas não era preciso. Ser daquelas pedras frente à igreja branca; ser daquele largo com laranjeiras, ser daquela estação de caminho-de-ferro tão limpa e florida; e ser daqueles campos, não amarelos, mas verdes, verdes porque 'é a altura das festas de Sant’Águeda, que é quando o campo está mais bonito'; se eu fosse de algum sítio, decidi logo ali aos treze anos, queria ser de Vila Nova da Baronia.
Não perdia uma oportunidade de ouvi-la de contar as trezentas mil histórias da vila. Fiquei a conhecer-lhe todos os vizinhos, a loja onde se aviava, o posto dos correios, os Bailes da Pinha na Sociedade, as festas na Casa do Povo, os funerais, a procissão onde chegara a ser a Verónica, o casamento da irmã com o homem que ela sempre quisera para si, o desfile do Entrudo, coisa séria e de gente grande, para o qual raparigas e rapazes se preparavam primorosamente – lá vai a Isabel de índia, lá vai a Dete de joaninha, depois de horas a fazer bolinhas com um furador em papel de lustro preto e a colá-las nas asas de papel encarnado, o Zagaia de mulher, o António Zé sem dentes e de cajado a fazer de velho.»
Todos os Dias São Meus (pág. 40/41)

Escolhi este pequeno trecho do livro sem nenhuma razão em especial.
E porquê? Porque qualquer bocado do livro que trouxesse para falar seria bom. Esta é a primeira conclusão a que cheguei ao terminar o livro da Ana. Todas as palavras, frases, períodos ou parágrafos estão vestidos a rigor e sem mácula nem sobras. Nada a mais, nada em falta. O enredo faz jus à estrutura que ela utiliza, uma coisa promiscua, em que nos agarra, aos leitores, nos envolve com a gente que ela criou do nada, no alvoroço de uma imaginação tão fértil quanto real, em que nos deixa com a sensação de que não nos iremos sem antes lhes perceber o destino, os tiques, as ‘coisices’ que tanto e tão bem reconhecemos.

Poderia, mas não vou fazê-lo, enquadrá-la no registo de escrita de outro autor que me fascina. Seria no entanto injusto. Ele é ele, a Ana é a Ana. Ou seja, nem o Mário Zambujal é para aqui chamado, nem a Ana é daqui levada. Mas lá que ambos têm aquele condão de nos enrolar aos trambolhões por entre ruas e escadas que subimos e descemos sem sequer desejar respirar, lá isso é verdade. Mas pronto, não vou compará-los.

Por um acaso que me levou a passar uma tarde entre leitores que gostam de conhecer autores, fui arrasado com uma representação da Ana, em que lia alto um pequeno trecho do seu livro. Num qualquer outro lugar com paixão pela escrita, a Ana veria este seu romance levado ao palco. Um monólogo que se tornaria imparável. Consigo facilmente imaginar-lhe um público fascinado. E, porque esse lugar de paixão pela escrita não será certamente este em que vivemos, fico-me pela imaginação e confissão pública.

«Todos os Dias São Meus» deve ser lido, absorvido, repetido.
Sorte a minha que já o fiz, e por isso, apenas por isso, vos aconselho a experimentar.
Procurei o livro nas livrarias, para comprar e oferecer, mas ‘não havia, estava esgotado’. Não esmoreci, falei com a Ana Saragoça e ela tratou de mo pôr ao colo.
Façam-no também.
Não por mim. Não pela Ana. Mas porque é bom.
Muito bom!

28/07/2014

Lembrar-me de mim

[Paulo M. Morais e a leitura de «Todos os Dias São Meus»]

«Este caderno, esta escrita, lembram-me de mim, e estranhamente não me desagrada a lembrança. De súbito parece-me apropriado aproveitar este título que o acaso me deitou ao caminho para pôr em ordem o deve e o haver da minha existência. A razão de me encontrar aqui.»
Todos os Dias São Meus (pág. 16)

Galáxia em espiral Messier 83
imagem: ESA
Eu lembrei-me de mim quando li o livro da Ana Saragoça. Recordo-me até de, na altura, ser outra a citação que mais se refletia no meu momento de vida. Algo que iluminava, em frases curtas e concisas, uma “verdade” que me estava subjacente. Porém, o nosso percurso tem tanto de constante como de irregular. O que era importante perde substância; o que era insignificante ganha peso. Por isso não escolhi a citação que tanto me disse há meses atrás. O que foi então algo quase cosmogónico, é agora um mero detalhe num quadro mais complexo.

Pouco interessa esta mudança. O importante é haver um livro que nos fica no inconsciente como tendo participado no nosso caminho. Livros que nos questionam sobre as nossas razões e atitudes; livros que nos remetem para leituras diferentes dos sentimentos que vivemos. Tenho a certeza de que quando voltar a ler “Todos os Dias São Meus” já será outro excerto a mexer comigo. Essa é a riqueza deste livrinho (que só é “inho” no tamanho): poder-nos acompanhar ao longo dos anos, mantendo a capacidade de nos dizer coisas novas. Sempre com a palavra justa, a frase polida, o parágrafo rematado. Nisso, a perfeição está alcançada. E, por estar impressa em livro, manter-se-á pela espiral do tempo como uma espécie de galáxia literária.


27/07/2014

Pequenino e bailarino

[Carla M. Soares e a leitura de «Todos os Dias São Meus»]

É pequenino, o livro da Ana Saragoça,  pequenino e bailarino. Pegamos nele, baila-nos nas mãos sem detença, como se tivessemos calçados sapatos vermelhos, e quando damos conta dançou-nos para fora da pista. Ficamos a olhar para ele em fúria, mas porque é que este livro não é maior? E com vontade de começar de novo, e se pousasse a agulha outra vez no início do vinil, ouviria a mesma música agora que lhe conheço os acordes finais?

Prima Ballerina, de Degas
Dançamos com vários pares quando nos deixamos tomar nos braços por «Todos os Dias São Meus», cada qual com seu ritmo. O tango da artista e do engenheiro, o vira do engenheiro com os filhos, o hip-hop destes rapazes com a vizinhança, o fadinho malandro da vizinha de cima, uma dança tradicional "craniana" afinal moldava, os acordes de violino cansado do idoso solitário… E, porque o livro é pequeno, é dança sempre só  de um instante, meia canção, a deixar água na boca para mais um pouco. Há um crime, mas o crime pouco importa. Importam as vozes atravessadas das personagens, queria ter ficado com os pés moídos de revoltear com elas até ao pormenor, escada acima escada abaixo, para dentro e para fora dos apartamentos deste prédio onde ninguém-sabe-nada-todos-sabem-tudo-da-vida-dos-vizinhos. Podia valsar com a Razão, a Razão precisa de ser entontecida numa valsa antes do final.

E no fim compreendemos que a inocência deste baile de vizinhos é ilusória. Corrompida por solidões e vícios e manias, minada por sarcasmo em rede fina, no fim uma gargalhada na nossa cara de parvos de leitores. Uma brincadeira séria. E isso é o melhor.  Dançava tudo de novo.

"Ah, isso. Não, disso não sei nada. Eu moro no quinto, ela morava no terceiro, não sei o que é que se passou. Pronto, sei aquilo que toda a genta sabe, que morava sozinha, até diziam que alguém lhe tinha posto casa, mas ela de bonita não tinha nada, e dali não entrava nem saía ninguém senão ela, quero dizer, acho que não saía, eu nunca vi, se lá entrava ou não não sei, nem quero saber, que eu não sou de me meter na vida de ninguém."
Todos os Dias São Meus (pág.10)



24/07/2014

Saragoça algemou-me

[Pedro Almeida Maia e a leitura de «Todos os Dias São Meus»]

Que dizer de um livro que se devora? De uma história que se consuma na mente do leitor sem qualquer esforço? Ainda mal abrira a capa, e já me deixava seduzir pelo misterioso equídeo em tecido colorido, que Ana Saragoça usa como adorno alfaiado deste Todos os dias são Meus. Saragoça não meteu propriamente Alberto Caeiro no papel, mas corre-lhe nas veias a magia do heterónimo pessoano.

São as primeiras páginas que prendem. As primeiras frases, palavras e interpretações colam-se à fantasia como mel nos dedos. Tal como manda a lei — se é que ela existe —, é impossível abandonar o misterioso acontecimento, revelado mal se abre a porta às hostes. Como apreciador de um bom crime literário — sublinhe-se, no papel — sou irrevogavelmente suspeito, mas daquela irrevogabilidade verdadeira. Saragoça algemou-me ao papel e deitou fora a chave.

fonte: Wikimedia Commons / Klaus with K
Para o leitor que deseja emoção com tradição, este livro arrebatará. Vestir a pele de um investigador mudo dará um êxito de bilheteira no cinema. Verbalizará as perguntas do polícia aos moradores do edifício citadino, mesmo sem as ver no texto, e sentir como se se vestisse de Sherlock Holmes e anotasse todos os testemunhos dos suspeitos. E que suspeitos! A destreza de Ana Saragoça inclui uma sugestionabilidade incrível, tão bem conduzida que permite ao leitor atribuir as características das personagens com apenas duas ou três linhas de narração-desprovida-de-narrador.

Neste estilo, puxando a brasa ao meu favorito, se a escrita de Ana Saragoça não vale ouro, não vale nada. Ana provoca e domina, induz expetativa, curiosidade e envolvência, relata o caos e até o erotismo com graça e muita audácia. Preciso de subir neste elevador. Preciso de mais uma dose.

22/07/2014

Uma cura pela literatura

[Cristina Drios e a leitura de «Todos os Dias São Meus»]

A leitura pode proporcionar, já se sabe, conhecimento, entretenimento e terapia. E é desta última qualidade que, por estranho que vos pareça, vos falarei, a propósito da leitura do romance “Todos os Dias São Meus” da Ana Saragoça. De facto, a vertente terapêutica da literatura está comprovada por estudos científicos. Talvez não saibam que, por exemplo, em França, durante a Grande Guerra, a leitura de romances específicos era recomendada aos soldados, nos seus tempos livres. Recentemente, li algures que nos Estados Unidos da América, os psicólogos “receitavam” regularmente livros em vez de comprimidos. Sem consultar nenhum especialista, sempre me dei bem com esta terapêutica. Se estiver mal, não tomo nada, pego num livro. Se o livro for bom, em geral, começa a fazer efeito após meia hora, uma hora de leitura. Se o livro for excelente, como no caso de “Todos os Dias São Meus”, começa a fazer efeito a partir das primeiras linhas. Não existe substância química – que eu saiba – tão eficaz. O problema é, tal como com os medicamentos, não sabermos à partida se o que estamos a tomar é verdadeiramente adequado ao nosso mal. Certos livros são apenas placebos, outros podem ser uma óptima terapêutica mas não ser a indicada para o nosso caso. Ora, nunca me tinha acontecido ler um livro que me curasse. Era, na verdade, uma coisa sem importância, uma ideia parva, de que só nos lembramos de vez em quando, como uma urticária incomodativa, e que guardamos, sem contar a ninguém, até perdermos totalmente o sentido do ridículo. Como já o perdi, vou então contar-vos: toda a vida morei num prédio com elevador e toda a vida sofri de alguma imaginação. E sempre que entrava no átrio do prédio, a penumbra e o fresquinho faziam-me temer que ao chegar o elevador, abrindo-se a porta exterior de rompante, se me deparasse um morto, por detrás das grades. Nenhum morto em particular, um morto qualquer, desconhecido! Cheguei mesmo a escrever um conto sobre isso. Foi, porém, a leitura do romance “Todos os Dias São Meus” da Ana Saragoça que me curou. Sem vos desvendar a intriga, imaginem o meu espanto ao, logo nas primeiras páginas do livro, me deparar com esta cena:

“E estava muito desfigurada? Quando eu lá cheguei já não consegui vê-la, estavam a levá-la toda tapada. Nem me deixaram entrar no elevador, caramba, também que exagero, afinal uma pessoa mora aqui, tem direitos, não é, se calhar até podia encontrar alguma coisa que ajudasse a Polícia. E não está certo obrigarem uma pessoa a subir as escadas a pé. Tiravam o corpo, limpavam, e deixavam as pessoas irem à vida delas.
Mas olhe que foi uma coisa feita com cuidado. À hora do jantar, num elevador, podia ter sido apanhado.”
Todos os Dias São Meus (pág. 12)


O que é certo é que depois de ler o “Todos os Dias São Meus” nunca mais temi encontrar um morto qualquer, desconhecido, sem rosto nem identidade, esvaído dentro do elevador. Nunca mais me assustei e estremeci ao abrir a porta e ao espreitar pelas grades. Agora entro no átrio do prédio, adianto-me na penumbra e no fresquinho, carrego no botão de chamada, oiço o gemer da maquinaria, o resfolegar ao aterrar no rés do chão, a campainha perlimpimpim que retine, abro a porta de rompante e lá está a tua personagem, Ana Saragoça! Está mortinha da silva mas é uma conhecida, uma amiga! Os vizinhos, se espreitarem pelo óculo, desconfiarão do meu sorriso tolo, paciência... E assim em todos os meus dias, sem excepção, por vezes repetidamente, porque moro no sexto, “Todos os Dias São Meus”!

20/07/2014

20 confissões proustianas de Ana Saragoça

Desafiei os meus leitores e amigos no Facebook a escolherem 20 perguntas de entre a lista imensa que é o questionário. Agradeço a todos a boa vontade e o facto de terem escolhido algumas de que eu queria fugir a sete pés…

A minha ideia de perfeita felicidade (sugerida por Linda David)
Amar e ser amada, escrever, ver os meus filhos felizes.

O meu maior medo (sugerida por Rogério Vieira):
A morte dos que mais amo.

A característica que mais me desagrada nos outros (sugerida por Olívia Azevedo-Duncan): 
A desonestidade.

Aung Sang Suu Kyi
A pessoa viva que mais admiro (sugerida por Carlos Pisco, Eugénia Vasques, Cristina Benedita e Gabriela Bruno): 
Aung San Suu Kyi, Malala Yousafzai; e todos os milhões de anónimos que por esse mundo fora arriscam a vida pelos seus direitos e pelos dos outros.

A minha maior extravagância (sugerida por Andreia Macedo e Teresa Sobral):
Ai, já não tenho! Mas, quando ainda tinha, era um bom perfume. Um dia…

A virtude que me parece mais sobrevalorizada (sugerida por Miguel Côrte-Real Matias, Ana Pedrosa, Pedro Mamede e Cristina Benedita): 
A humildade.

As ocasiões em que minto (sugerida por Virgínia Garcia, Pedro Sande, Pedro Mamede): 
Só quando é estritamente necessário, e, francamente, quase nunca é. De resto, se dantes a mentira tinha pernas curtas, agora, com toda a gente em rede, é completamente perneta…

A minha qualidade preferida num homem (sugerida por Rita Lello): 
Inteligência. E sentido de humor!

Quando e onde fui mais feliz (sugerida por Nuno Cardoso Dias): 
Já tive tantas épocas felizes… A mais recente, especialíssima, foi nos Açores, em 2012. Nunca vi tanta beleza junta nem os meus filhos tão felizes.

O talento que mais gostaria de ter (sugerida por Catarina Gonçalves e Rosana Cordovani): 
Peço emprestadas as palavras de Almada Negreiros: ‘Eu admiro toda a gente que saiba fazer qualquer coisa de que eu não seja capaz - toda a gente faz qualquer coisa que eu não sei.’

O que considero o meu maior feito (sugerida por Maria Joana Andrade):
Ter produzido o filho e a filha mais fantásticos e extraordinários e tudo e tudo e tudo do mundo e do estrangeiro.

O meu bem mais precioso (sugerida por Cristina Benedita):
O conteúdo dos livros que li.

O é para mim atingir o fundo (sugerida por Fernanda Neves):
Não sei. Quando penso que bati lá, há sempre um pouco mais de fundo.

A minha característica mais vincada (sugerida por Teresa Pais): 
A sede de saber.

O que valorizo mais nos meus amigos (sugerida por Eugénia Bettencourt): 
Gostarem de mim é muito simpático. Para além disso, lealdade, sentido de humor e todas as pequenas coisas que os tornam únicos.

O meu herói na ficção (sugerida por Maria Emília Macedo):
João sem Medo, Jean Valjean, Jo March.

A figura histórica com que me identifico mais (sugerida por Milay Teles): 
As sufragistas de todo o mundo e principalmente as portuguesas, que foram instrumentais na implantação da República e de imediato descartadas.

Um arrependimento (sugerida por Rui Geada e Luís Latas) : 
Ter deixado que a vida me afastasse da minha melhor amiga de juventude.

Como gostaria de morrer (sugerida por Cristina Benedita e Olívia Azevedo-Duncan): 
Depressa e sem sujar muito.

O meu lema (sugerida por Maria Dulce Martins):
‘O carácter é o destino’, Heraclito de Éfeso

19/07/2014

Rumo ao El Dorado - finalmente o segundo encontro NAU

[Carla M. Soares e o segundo encontro NAU; publicado em versão abreviada em Monsterblues]

Depois de avanços e recuos, deu-se o segundo encontro NAU, há muito prometido e muito devido. Havia trabalho a distribuir, projectos a planear, pontas a atar, mas havia, sobretudo, a vontade de um reencontro informal, e desta vez, com direito a voo dos Açores para completar a equipagem desta barca.


Sta Apolónia acolheu-nos em noite quente, a pedir refrescos, mas desta vez falhou-nos o Sardinha. Ou falhamos nós, que nos esquecemos de prevenir que, em vez dos sete do primeiro encontro, grupo incompleto, seríamos treze, a NAU toda, com o seu açoriano e ainda alguns acompanhantes. Não tinha o Sardinha lugar, porque o espaço é reduzido, ou alimento para tantos, por isso zarpamos rumo ao El Dorado, que sabendo toda a gente que é coisa de mito, afinal é ali mesmo ao lado. Perdemos o fotografo e o nome tão castiço, mas ganhamos a esplanada e o ar livre.

Não houve estranheza inicial - o marujo que aterrou agora e não nos conhecia pode comprová-lo - nem ela era esperada. Afinal não era o primeiro encontro, nem para os acompanhantes. O que houve foi muita agitação de lugares e de pedidos e um empregado de mesa sozinho para tantas mesas e inicialmente mal-disposto com tanto trabalho inesperado. Passou-lhe, e foi boa a comida, boa a companhia e boa a conversa.


O que houve foi troca de livros e de assinaturas - doações para a biblioteca e promessas de envios posteriores também, cá se aguardam esses livros açorianos - e tagarelou-se muito, sobre muita coisa para além dos livros, embora sobretudo sobre eles. Sobre as editoras e o nosso trabalho. Sobre o que acontece e o que gostariamos que acontecesse. Sobre o que podemos ou devemos fazer e qual o nosso papel, afinal, nisto dos livros. Sobre outros autores. Mas também se conversou sobre sotaques dos Açores e viagens. Sobre queijos (o marujo açoriano presenteou-nos com maravilhoso queijo das ilhas que devoramos ali mesmo, eternamente gratos!) e sobre percursos de vida. Que diferentes somos! Que bom ser assim! E falamos sobre filhos, trabalho, estudo e planos. Rimo-nos um bocado também, inevitável, afinal é a marujada!

Projectou-se apenas um pouco, trabalhou-se quase nada, é preciso outra reunião, vamos lá ver que surpresas conseguimos preparar e se os prazos são para cumprir, mas, muito importante, fez-se foto finalmente completa deste grupo de marujos lançados em mares contrários, à procura… pois, do El Dorado!


17/07/2014

a soma dos pequenos nadas

[Raquel Serejo Martins e a leitura de «Todos os Dias São Meus»]

«A sorte deles é que eu não sou de falar da vida de ninguém, que se eu contasse o que sei, ele nem a presidente da junta chegava, quanto mais a ministro.»
Todos os Dias São Meus (pág. 30)

E a nossa sorte é que a Ana Saragoça é de contar assim, ao detalhe, a vida ou os dias das personagens, personagens ligadas por tijolo e betão, porque todas residentes ou assíduas no mesmo prédio.
E, do rés-do-chão ao telhado, vamos sabendo sobre estes peculiares moradores, à lupa somos todos peculiares, um pecúlio ou pé-de-meia, de esquisitices, de curiosidades, de cismas, de medos, de ressentimentos, de frustrações, de afectos, de solidões, o que ao longo da narrativa faz de carne e osso as personagens e enfia o leitor dentro do imóvel porque todos temos ou tivemos vizinhos assim.
Um livro que é também um policial (será um policial?), há um homicídio, um detective, testemunhos e suspeitos. Revela o criminoso e o seu fim, um fim curioso, a autora a léguas da previsibilidade.
Um livro feito dos pequenos nadas que somados fazem dias inteiros, vidas inteiras.
Um livro escrito como eu gosto, com ironia e com poesia.
Um livro com um defeito, lê-se num sopro, faz parecer que o tamanho importa, porque sabe-nos a pouco, queríamos mais, continuar a leitura, sentimo-nos roubados, não escrever mais quando se escreve assim também é crime.
Ana Saragoça: Queremos mais!


15/07/2014

Indisponível para morrer

[Sónia Alcaso e a leitura de «Todos os Dias são Meus»]

Sempre acreditei que o universo de um bom livro nos persegue por muito tempo. Ora eu li o livro da Ana Saragoça há cerca de dois meses e sempre que passo nas minhas escadas, pela porta dos meus vizinhos (têm qualquer coisa de estranho...) lá volta ele - o  mundo que a Ana tão bem criou. Um mundo que envolve tudo o que no comportamento dos seres humanos parece absurdo, injusto, grandioso, cheio de coragem ou cobardia; uma história que acontece acima e abaixo da aparência do acontecer, como se a vítima, afinal, se tenha declarado indisponível para morrer. À volta dela, gravitam personagens que nos deixam adivinhar as vidas, que escutamos mesmo sem querer, que vamos entendendo com o adensar do mistério. Como num filme. Por vezes cómico, por vezes trágico.
Um livro que, mais do que se lê, se vive sofregamente.


«Suponho que há sempre uma altura na vida em que tentamos fazer parte de um grupo, ser “normais”. Os únicos modelos de comportamento que eu respeitava eram os que me tinham sido transmitidos pelos livros. Eu lia tudo o que me vinha parar à mão, portanto tinha muitos modelos à escolha, e tentei seguir alguns. E foi aí que se deu o meu grande choque com a realidade. Nos livros, mesmo nos mais “experimentais”, as personagens têm sempre alguma coerência. Uma personagem que faz “isto” não pode fazer “aquilo”, e se faz “aqueloutro”, naturalmente fará “algoutro”. Na vida as pessoas são tudo menos coerentes e conseguiram surpreender-me sempre – pela negativa. Os livros existem porque alguém concebeu uma intriga com princípio, meio e fim, com peripécias e um desenlace. A vida real pode arrastar-se indefinidamente por intrigas mesquinhas, completamente desprovidas de interesse, e sem outro fim à vista que não a morte.»
Todos os Dias são Meus (pág.59/60)

10/07/2014

perfil de Ana Saragoça

[texto de Carla M. Soares]


Diria que uma massa de cabelo ruivo, ruivo a sério, nada dessas cores deslavadas de meio termo, quase esconde um olhar tímido. Cara de boneca, gestos de boneca, autenticidade na “massa do sangue”.  Alentejano, pois claro, que ainda se lhe nota na língua.

Não sei nada sobre a vida da Ana. Fiquei de lhe tirar o retrato, e para lhe tirar o retrato se calhar devia ter-me encontrado com ela outra vez. Feito perguntas, como jornalista a sério, munida de gravador. Ou ao menos papel e lápis. Mas não quis. Porque quis este retrato a partir da mulher que encontrei duas vezes apenas – a mulher, a autora, o que quiserem. Fogo no cabelo, recato no gesto, e pelo meio a imaginação.

Da primeira vez que nos encontrámos éramos muitos. Sete, para ser mais precisa. Havia cabelos louros, castanhos, uns brancos à mistura, até uma careca. Mas ruivos, assim fogosos, só os dela. Riso aberto, mas eu, tímida, adivinhei-lhe a timidez. Uma certa maneira de virar-se para dentro que os que se viram para dentro adivinham uns nos outros. Posso estar errada mas não quero, porque o que escondemos é muitas vezes o melhor. Na Ana, adivinho, adivinhei antes de ter lido a sua  pequena pérola, um dentro muito maior que um fora. Mulher de força a enfrentar tempestades, que são muitas vezes tempestades o que os dias têm para oferecer. Tempestades, bonanças, novas tempestades.

fotografia de Mário Pires
A segunda vez foi na Feira do Livro, eu em sessão de autógrafos, coisa desgraçada, ela de visita, com as duas crias – o mais velho a cara da mãe, sem os cabelos ruivos, a mais nova a menina linda que queremos todos. Eu tenho uma, mas maior. Os dois a simpatia da mãe.  Foi toca e foge, ficou a vontade de mais tempo de conversa.


É alentejana, sim, de gema, e depois de alentejana foi actriz, e ser actriz ajudou-a a apanhar os nossos tiques. Nossos, portugueses, humanos. Aprendeu com quem tinha para ensinar, outros escritores, dos bons, outras escritas. Depois de ser actriz, depois de aprender, depois de ter a sua voz, escreveu este Todos os Dias São Meus, é preciso ler, é preciso lê-lo, e depois desse Quando Fores Mãe Vais Ver. Entre os dois, diz, descobriu que ser escritora era importante. Que ser escritora lhe dava prazer. Quase físico, quase sexual. É escritora, sim senhor, digo eu, que sou leitora.

03/07/2014

livro do mês: Todos os Dias São Meus

A Ana Saragoça é a timoneira do Colectivo NAU em Julho. Oportunidade para recuperar o seu romance de estreia, «Todos os Dias São Meus», citado na revista LER por Mário de Carvalho como um dos livros de novos autores que mais o surpreenderam. Bastaria isso para ser leitura obrigatória. Mas quem tiver a sorte de pegar nele, irá encontrar muitas mais razões para dar o tempo por bem entregue. 


Todos os Dias São Meus
romance (2012, Estampa)
Ana Saragoça

sinopse

Um prédio. Uma morte. Um mistério. Não se trata, porém, de um romance de pretexto policial. É verdade que há polícias e testemunhas - sobretudo testemunhas - e alguns suspeitos. Mas Todos os Dias são Meus é um extraordinário retrato do Portugal profundo, com os seus tiques, os seus ressentimentos, os seus ridículos.