08/05/2014

um rapaz com gosto por coelhos no chapéu

[texto: Carla M. Soares / fotografia: Wikipedia]

Mateus Mateus, Mateus a dobrar em tamanho, Mateus fechado no seu círculo escuro, Mateus nascido no frio que a caminho da guerra se cruza com o cão Quieto Adamastor, Mateus a quem se oferecem lampejos do futuro. Alvin Martin como ele, mas sem o privilégio da cor. Albino. Mateus cuja morte se anuncia nas primeiras páginas, sem nos deixar nunca certos dela. Mateus narrador. Mateus que se mede e se abre nos olhos de Georgette. Mateus personagem com jeito de antepassado embrulhado nas fantasias do tempo.

Erich Maria Remarche
Um rapaz com gosto por coelhos no chapéu e a ocasional figura que reconhecemos, como, algures numa trincheira, Erich Maria Remarche, antes de sê-lo. Vou ler A Oeste Nada de Novo, um dia destes. Estou em falha.

E a autora. Não a do livro - Cristina Drios - mas a do livro dentro do livro, criadora imaginária que, do século XXI, espreita a primeira Guerra Mundial e se debate com as indecisões da escrita e da vida pessoal. É difícil esquecer que a autora Cristina não é a autora sem nome dentro das páginas. Mas não importa. Importam a história, a História. E Tirésias, que sem ser cego quer fazer parte da história mas não se sabe o que vê.

A voz da autora:

"Aprendeu o funcionamento do motor, da embraiagem, da ignição, travões e velas. A mecânica era um novo mundo, rígido, de causa e efeito, onde não havia lugar à emoção. Tudo aí era inequívoco. se uma peça se avariava deixava o todo de funcionar, era preciso então localizar a fonte do problema, reparar e substituir a peça, e tanto bastava para a ordem das coisas ficar assegurada. Não existiam zonas cinzentas nem matizes, dúvidas ou incertezas: o mundo era ordenado, claro e perfeito, o único que Mateus entendia." (pág. 44)

"Os animais pressentem a minha condição, como pressentem cataclismos naturais e o odor do mal. Se Quieto Adamastor falasse, poderia descrever o círculo a gravitar à minha volta como uma espécie de anel de Saturno, negro e grumoso. O círculo expandiu-se e agora caibo todo lá dentro, já não tenho os braços e os pés de fora como em criança, cresci e o círculo cresceu, expandiu-se para me abarcar todo e não sobrar nada a cair para fora." (pág. 50)

Podiam ser outras as citações, este livro está repleto de momentos que gosto. Como um, em que o pequeno Émile (o do chapéu de ilusionista) "não se espantava com chuvas de sapos, de peixes ou de flores, eventos cuja probabilidade aumentava em tempos calamitosos. Era fácil imaginar deus, o grande mágico, a treinar os seus truques algures no azul, por entre nuvens, potes de ouro e bruxas a pentearem-se. às vezes, como a Émile com o coelho, as coisas davam para o torto, e choviam coisas esquisitas lá de cima. Como epifanias desobedientes." (pág. 181)

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