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19/06/2014

ser apenas lágrima

[Cristina Drios e a leitura de «O Intrínseco de Manolo»]

“Marília adormece só, como só se recordava gente desde sempre, passam as horas e ninguém lhe nota a falta, e ela a de ninguém também. Escorre-lhe água pela face, são centenas, milhares de gotas as que naquela noite lhe lavam cara e alma, e é quando Marília sente a estranheza do calor de uma lágrima e, perplexa, recorda todos os momentos em que, pulando-lhe o coração, se sentiu alguém e feliz, que entende que nunca ninguém a entenderá. E é nessa lágrima final que se deixa morrer de vez no mundo dos lúcidos e parte na lucidez do mundo dos loucos.” 
O Intrínseco de Manolo (pág. 81)


Marília pouco se dá a nós, leitores, e, no entanto, seria, para mim, personagem de solidão e vazio, como se, feita de ar, flutuasse acima da realidade, da imundice e da pulhice que grassam em Cousa Vã, e nem sequer conseguisse ser beliscada por elas, merecedora de um livro inteiro. “Só, como só se recordava gente desde sempre”: como todas as grandes personagens carrega com dignidade o fardo da condição humana enquanto, ao mesmo tempo, é a antítese de tudo o que há de porco, feio e mau, de terreno, físico e suado, noutras personagens do romance. A lágrima quente que lhe desce pelo rosto já foi chorada por santos, por loucos e por nós, leitores. Todos somos, desse modo, um pouco Marília. Eu muito gostaria de ser apenas lágrima. 

"Summer Interior", de Edward Hopper
“E é aqui que nós paramos e ficamos também, com Marília e o seu mundo cheio de horas completas e momentos vazios, descobrindo, abismados, a magnitude da mediocridade das gentes de fácil julgamento.”

17/06/2014

o alentejanismo mágico

[Ana Saragoça e a leitura de «O Intrínseco de Manolo»]

“E de repente surgiu a azinheira, logo uma azinheira cuja silhueta nunca houvera afinal visto com olhos de gente, e nela estava uma carta pregada, e nela estava a algazarra da fúria e da mansidão, da cobardia dos ignorantes, e na sua sombra queria Manolo descansar, mas agitado era seu sono e sentiu apenas uma lágrima a acordá-lo; sentiu-se perdido e vivo como nunca antes experimentara e ouvia agora, vagamente mas ouvia, chamar seu nome ao longe, muito longe, e perdido estranhava o lugar, tão perdido quanto sonho quis que tudo fosse, até que olhou para a porta e ouviu:
- Porque choras, homem?”
O Intrínseco de Manolo (pág. 36)


Alentejana dos quatro costados, logo me saltou à vista que o Alentejo de Manolo não era o Alentejo que conhecemos nós, os de lá, nem os que aprenderam a conhecê-lo através da muita literatura neo-realista. Neste retalhinho à beira-mar plantado, o Alentejo é o sonho dos citadinos, com as suas planícies imensas e o silêncio tão difícil de encontrar alhures. 

Mas quer parecer-me que o João Rebocho Pais nunca pretendeu retratar um Alentejo real, nem gentes reais. Precisava de um cenário onde expandir uma galeria de excêntricas personagens, primando quase todas, de um modo ou de outro, por possuírem uma sexualidade descabelada, fosse pela bizarria ou pela dimensão dos apetites ou por ambas, que isto de comer e coçar tudo vai de começar. E tenho para mim que Cousa Vã foi parar ao Alentejo, porque só lá se podia encontrar a âncora que impede toda aquela nave de loucos de disparar galáxia fora em cavalgadas desbragadas, hilariantes e não raro comoventes a ponto de ainda poderem perturbar o sossego das estrelas. Essa âncora era a azinheira de Manolo. O seu a bem dizer intrínseco.  

E foi graças a essa azinheira e a toda a trapalhada de gente e de acontecimentos a reboque dela que nasceu o alentejanismo mágico™ de João Rebocho Pais. A planície merece e esta leitora agradece.  

12/06/2014

Pudesse Manolo. E pode.

[Carla M. Soares e a leitura de «O Intrínseco de Manolo»]

Pudesse Manolo, e em Cousa Vã só veria mesa e cama e o corpo maduro da sua Maria, depois que lhe calhou ter dinheiro no bolso e nenhuma preocupação senão (re)descobrir os recessos e suores e prazeres do leito conjugal. Pudesse Tonho, e não haveria chouriço nacional que lhe chegasse para os recém descobertos apetites, enquanto Tina, pudesse ela, de feira em feira testaria com igual prazer cuequinhas e feirantes. Arnaldo, pudesse, fingir-se-ia homem de negócios nos negócios fingidos que conhece, desconhecidos de Marília, perdida em si e nos pássaros que a entendem. Alberto, que em terra de cego tem olho e se fez rei, ou quase, pudesse escaparia da porcaria que, porque pode, Idalina deixa tomá-la de prazer – no corpo e na casa, cama e cozinha em orgásmica imundice. Pudessem eles.

Pois podem, em Cousa Vã, com essa letra e com outra. E muito. Algures no intrínseco de Manolo, Manolo a personagem, há tesão pelo corpo de Maria e pela vida. É de amor a história, sem pejo de reconhecê-lo, traduzida em cavalgadas inesperadas no corpo um do outro e em descobertas que idade e hábito já não faziam suspeitar.

"Não lembrava a última vez que, olhos nos olhos e com verdade e perdição, na intimidade escondida das pessoas que nada devem ou temem, escorregara suor pelo mistério de tremuras que lhe dava aquela mulher. Com cheiros, risos e carnes que em mais nenhum poderia haver, cego de paixão e entrega que escondera ao mundo por temor da retaliação à sua condição de macho maduro. Bigodes, vinho e porrada muitos, merdas amaricadas daquelas é que não, pensava. Ou achava que pensava. Ou pensava-se, ou calhando nem tal. O duche, à laia e imagem da azinheira, sulcava caminho, deixava pistas e desenhava momentos." (p.23)

Outros tesões livro fora são de resolver em camas e fora delas, assunto de carnes e cheiros, de texturas e prazeres, coisas da terra que a quem lê arrancam gargalhadas e fazem franzir o sobrolho, na elegância pícara ou na brejeirice com que por vezes nos apanham de surpresa. Cuidado, vós homens, e não tiverdes cuidado, ainda vos vedes tomados num canto qualquer de uma página por Tina, que “atrás de Zé Colmeia vieram umas dezenas mais de parceiros em trotes selvagens, outros Zés, Manéis, Antónios, Alfredos e por aí fora; é mesmo possível que em tanto nome não haja letra do alfabeto que tivesse escapado à sanha persecutória daquele buraco fulminante.” (pág. 69)  

É das coisas pequenas de aldeia, dos diz-que-disse, dos arremedos de vizinhança, das culpas e dos perdões implícitos de quem pertence, apenas porque é Cousavanense. E é de magia, também, a magia pequena e infinda da terra, de azinheiras que são mulheres na voz e se desdobram no consolo nos momentos negros da alma. “Os primeiros dias, as primeiras semanas, haviam sido um retiro de dar dó. Por mais que se esforçasse a velha árvore, por mais que convocasse os deuses e todos os servos da terra, nada mais conseguira do que esbarrar no silêncio de um homem perdido. Cobria-o com a sua sombra, afagava-o em noites frias. Cantava-lhe coisas junto com o vento, dançava para ele com seus ramos e folhas. E nada. Nada de Manolo.” (pág.162)

Eros e Psique, de Jacques-Louis David
imagem: Wikipedia

05/06/2014

olha, João, e se te fosses...

[Paulo M. Morais e a leitura de «O Intrínseco de Manolo»]

«E reviveram montes e vales, grutas e fados cantados, incendiou-se Lisboa por ali, e veio outro terramoto, este sem mortos nem marqueses, se bem que a gritaria calada por pudor nos fizesse adivinhar, a todos nós que não estivemos lá, que Manolo e Maria estavam de novo possuídos, nus, encharcados e gozando-se em sua estuporada simplicidade.»
O Intrínseco de Manolo (pag. 57)


Coro ao ler o livro do João Rebocho Pais. Não propriamente por pudor, mas pela raiva do bem que ele descreve uma das coisas mais difíceis da literatura: dois amantes a acasalarem. Viram a diferença entre nós os dois? Acasalarem é linguagem de aula de ciências, onde se mostra como os coelhos fazem coelhinhos. É preciso um “toque” especial para descrever o acto do amor (mais outra definição para ir direitinha para o lixo...), para acertar em palavras os cheiros, dimensões, particularidades dos corpos nus. É preciso um dom para descrever o que eles fazem na cama (zás! mais um lugar-comum para mim).

Coro ao ler o livro do João Rebocho Pais. Porque os preliminares estão obscenamente bem escritos, enleando-nos num jogo de palavras maviosas que depois desembocam numa torrente orgástica (combinado, deixo de fazer trocadilhos de índole sexual) que nos surpreende e abana. O João testa e estilhaça os limites de como se fala de sexo num romance sem o tornar boçal e abandalhado. E irrita a classe com que o faz, através de frases aperaltadas de casaco e gravata, mas sem calças. E sem cuecas. No uso do palavrão, o João Rebocho Pais parece-se assim à Tina: «Fodilhona, claro, mas avisada e poupadinha.» (pág. 128)

Temos aqui escritor capaz de proezas à altura de A Casa dos Budas Ditosos. E aí, coitado, o João é bem capaz de poder deixar de sair à rua. É que se não forem as fãs a dar cabo dele, serei eu, corado da cabeça aos pés. Porque a mim nem forçado me sai a maneira como gostava de acabar este texto. Vou ter de pedir ajuda ao Manolo. E é sob a sombra e protecção do teu personagem que digo isto:

Olha, João, e se te fosses foder por escreveres tão bem uma foda?

03/06/2014

a viagem da timoneira Cristina Drios

Na passagem de testemunho, relembramos a viagem da timoneira Cristina Drios.

Festival du Premier Roman de Chambéry
imagem: Arlette Darbord
Tudo começou, literalmente, com a crónica sobre o primeiro jantar NAU. Depois houve um perfil traçado pela Raquel Serejo Martins, citações e comentários feitos pelas marujas Carla M. Soares (um rapaz com gosto por coelhos no chapéu), Sónia Alcaso (o medo e a solidão da guerra), Ana Saragoça (o espaço físico da tradutora), uma evocação do Paulo M. Morais (uma coisa sem importância aparente), um poema da Raquel Serejo Martins inspirado em «Os Olhos de Tirésias», e as respostas da timoneira ao questionário de Proust. Pelo meio, a Cristina ainda teve tempo de ir a França participar no Festival do Primeiro Romance de Chambéry, o que nos encheu de orgulho.

Resta-nos agradecer ao Mateus Mateus e restantes personagens criados pela Cristina Drios, por nos terem proporcionado uma belíssima primeira viagem do Colectivo NAU.

29/05/2014

o espaço físico da tradutora

[Ana Saragoça e «Os Olhos de Tirésias»]

"A secretária, o contraplacado liso, cinzento-rotina, a fazer um ângulo recto à posição da janela, a cadeira e eu. Neste espaço de escritório, a janela é o astro-rei à volta do qual gravitam as estantes, as cadeiras, a secretária, canecas de chá, um boião de lápis, calendários. Livros fazem-se esquecidos no pó das prateleiras, há postais, resmas de papel por desembrulhar, papel usado para rascunho, restos de papel azul de vinte e cinco linhas, mais livros e ainda outras pilhas e montes de livros. Alguns são edições nacionais de traduções minhas. É um trabalho fantástico, que me enreda na complexidade de cada uma das línguas, o de traduzir, lidando com a cor e o cheiro das palavras. São bailarinas caprichosas, prima-donas exigentes, ora secas, ora sensuais, e, por vezes, é difícil encontrar aquela que melhor dança em certo contexto e sintaxe."
Os Olhos de Tirésias (pág. 117) 

A tradutora, invisível, no seu espaço sagrado

Uma das condições que estabelecemos ao embarcar na nossa NAU foi a de não cairmos no muito português desporto de cantarmos loas uns aos outros. A outra, que a precedia, era a de nos lermos uns aos outros e de destacarmos de cada livro uma citação sobre a qual quiséssemos ‘trabalhar’ o nosso modo de ler a obra do colega de tripulação. 

Falar sobre Os Olhos de Tirésias sem desvendar algum segredo é impossível, e seria uma injustiça privar o leitor de ir saboreando cada nova surpresa. Para quem, como eu, tem paixão por história, por música e por literatura, o livro é como um bufete que a cada passo revela uma iguaria. 

Escolhi este trecho porque, ao lê-lo, senti que a Cristina Drios, alguém com quem nunca falara até há meses, tinha de algum modo entrado no espaço sagrado da minha área física de trabalho. Mais, que tinha entrado na minha cabeça de tradutora e tinha tocado naquela parte intimíssima de mim que me faz amar o que faço: olhar em redor e sentir-me reconfortada com a companhia de livros e papéis; olhar para as palavras de um original e perder-me na imensa e deleitosa dificuldade de as transpor para português da melhor maneira possível – e há sempre uma maneira melhor, um termo exacto que passou a tarde toda a esquivar-se-me para me assaltar a meio da noite, obrigando-me a acender a luz e a escrevinhá-lo à pressa antes de conquistar o direito de voltar a adormecer. 

E esta é de facto uma das pouquíssimas partes do livro que posso partilhar com quem não o leu sem lhe roubar o prazer da descoberta das pequenas jóias que as suas páginas encerram. Só lhes posso dizer uma coisa: é uma caça ao tesouro que vale bem a pena, portanto leiam.   

20/05/2014

naturezas-mortas e rosnadelas de cão

[citação de «Os Olhos de Tirésias» escolhida por João Rebocho Pais]

"O velho conduziu-me, arrastando os passos pelo linóleo gasto, a uma sala ao fundo do corredor. Também pelas paredes subia, do chão ao tecto, o mesmo cansaço que parecia entorpecer toda a cidade, e uma inércia modorrenta esvaía-se das estampas, com naturezas-mortas, desbotadas. Sentei-me enquanto me pedia que lhe lesse a carta, o cão, Quieto Adamastor, a rosnar-me aos pés." (pág. 50)

Natureza morta, de Paul Cézanne

15/05/2014

uma coisa sem importância aparente

[texto: Paulo M. Morais / fotografia: Porto Editora]

"Cumprimentámo-nos, passando a ser dois a tentar, numa cumplicidade instantânea, abrir o chapéu. Perguntar-me-ão, porquê contar isto, este pequeno episódio sem importância, duas pessoas acabam de se conhecer e imediatamente se dedicam a um objectivo comum, o de abrir um chapéu-de-sol encravado, numa displicente sintonia? Dir-vos-ei – isso, sim, é a minha única certeza – que as coisas sem importância aparente, quase irrelevantes no castelo de cartas das nossas vidas, são aquelas que têm um verdadeiro significado. Naturalmente, só nos apercebemos disso mais tarde, reflectindo um pouco sobre os acontecimentos.
Pois eis: duas pessoas, dois desconhecidos, atrapalhados num gesto inócuo, rindo da sua inabilidade, e isso revela, gostaram logo um do outro, quiseram agradar-se, não por pura cortesia, mas porque necessitaram, na primeira impressão, de dizer um ao outro quem eram." 
Os Olhos de Tirésias (pág. 21)


As páginas de «Os Olhos de Tirésias» prestam-se à citação, esse exercício de extirpar pedaços que, por si só, conseguem representar um todo. Mas agora em que tenho de escolher uma passagem (e por querer escolher somente uma única passagem), não poderia ter escolhido outra que não esta a falar-me das “coisas sem importância aparente”. Primeiro porque me revela um modo diferente de olhar para o mundo. Sim, é isso mesmo: o castelo de cartas da nossa vida é feito de gestos aparentemente inócuos.



Mas existe outra razão para a minha escolha. É que eu vivi esta descrição quando, na Feira do Livro de Lisboa (2013), eu e a Cristina nos sentámos frente a frente para crescermos de um conhecimento "virtual" para um conhecimento "real". Não havia preocupação em agradar ao outro (já chegámos àquela idade em que não se forjam elos por frete ou obrigação), mas a verdade é que nos rimos das nossas inabilidades. Ao início da tarde troçámos de eu estar sentado numa poltrona jactante, “feito escritor” rodeado de escritores, a autografar um «Revolução Paraíso» para a futura leitora Cristina. E, no final da tarde, troçámos de ela estar sentada numa cadeira periclitante, “feita escritora” rodeada de escritores, a assinar um «Os Olhos de Tirésias» para o futuro leitor Paulo. Não éramos desconhecidos, mas posso afirmar que naquela tarde selámos a amizade anteriormente prenunciada, talvez por lermos um no outro que estávamos sob o mesmo guarda-sol encravado, a tentar escapar das mesmas cargas de água. E, sem que então o soubéssemos, talvez tenha nascido ali a semente NAU.

Após o nosso encontro, faltava a sintonia de abrir o livro autografado e gostar do que lá estava escrito. Tirésias é um romance feito para ler na solidão da noite, aconchegado por uma manta, a imaginar o crepitar duma lareira. Aquelas palavras rejeitam a confusão. Pedem silêncio e tempo. Não sentimos pressa por tragar páginas; sentimos vontade de fazer perdurar o prazer da leitura. Exactamente como me acontece com a Cristina, onde encontro uma amizade rara, daquelas para saborear ao longo dos dias, semanas, meses, anos, desfrutando serenamente da sorte que foi termo-nos cruzado por causa dos nossos livros e de, num riso partilhado sobre as nossas inseguranças e certezas, termos mostrado um ao outro quem éramos.

Quando leio a Cristina Drios, reconheço uma escritora. E quando ela me lê, faz-me acreditar que sou um escritor. Por isso, nem que seja entre nós, talvez o sejamos mesmo.

08/05/2014

um rapaz com gosto por coelhos no chapéu

[texto: Carla M. Soares / fotografia: Wikipedia]

Mateus Mateus, Mateus a dobrar em tamanho, Mateus fechado no seu círculo escuro, Mateus nascido no frio que a caminho da guerra se cruza com o cão Quieto Adamastor, Mateus a quem se oferecem lampejos do futuro. Alvin Martin como ele, mas sem o privilégio da cor. Albino. Mateus cuja morte se anuncia nas primeiras páginas, sem nos deixar nunca certos dela. Mateus narrador. Mateus que se mede e se abre nos olhos de Georgette. Mateus personagem com jeito de antepassado embrulhado nas fantasias do tempo.

Erich Maria Remarche
Um rapaz com gosto por coelhos no chapéu e a ocasional figura que reconhecemos, como, algures numa trincheira, Erich Maria Remarche, antes de sê-lo. Vou ler A Oeste Nada de Novo, um dia destes. Estou em falha.

E a autora. Não a do livro - Cristina Drios - mas a do livro dentro do livro, criadora imaginária que, do século XXI, espreita a primeira Guerra Mundial e se debate com as indecisões da escrita e da vida pessoal. É difícil esquecer que a autora Cristina não é a autora sem nome dentro das páginas. Mas não importa. Importam a história, a História. E Tirésias, que sem ser cego quer fazer parte da história mas não se sabe o que vê.

A voz da autora:

"Aprendeu o funcionamento do motor, da embraiagem, da ignição, travões e velas. A mecânica era um novo mundo, rígido, de causa e efeito, onde não havia lugar à emoção. Tudo aí era inequívoco. se uma peça se avariava deixava o todo de funcionar, era preciso então localizar a fonte do problema, reparar e substituir a peça, e tanto bastava para a ordem das coisas ficar assegurada. Não existiam zonas cinzentas nem matizes, dúvidas ou incertezas: o mundo era ordenado, claro e perfeito, o único que Mateus entendia." (pág. 44)

"Os animais pressentem a minha condição, como pressentem cataclismos naturais e o odor do mal. Se Quieto Adamastor falasse, poderia descrever o círculo a gravitar à minha volta como uma espécie de anel de Saturno, negro e grumoso. O círculo expandiu-se e agora caibo todo lá dentro, já não tenho os braços e os pés de fora como em criança, cresci e o círculo cresceu, expandiu-se para me abarcar todo e não sobrar nada a cair para fora." (pág. 50)

Podiam ser outras as citações, este livro está repleto de momentos que gosto. Como um, em que o pequeno Émile (o do chapéu de ilusionista) "não se espantava com chuvas de sapos, de peixes ou de flores, eventos cuja probabilidade aumentava em tempos calamitosos. Era fácil imaginar deus, o grande mágico, a treinar os seus truques algures no azul, por entre nuvens, potes de ouro e bruxas a pentearem-se. às vezes, como a Émile com o coelho, as coisas davam para o torto, e choviam coisas esquisitas lá de cima. Como epifanias desobedientes." (pág. 181)