27/07/2014

Pequenino e bailarino

[Carla M. Soares e a leitura de «Todos os Dias São Meus»]

É pequenino, o livro da Ana Saragoça,  pequenino e bailarino. Pegamos nele, baila-nos nas mãos sem detença, como se tivessemos calçados sapatos vermelhos, e quando damos conta dançou-nos para fora da pista. Ficamos a olhar para ele em fúria, mas porque é que este livro não é maior? E com vontade de começar de novo, e se pousasse a agulha outra vez no início do vinil, ouviria a mesma música agora que lhe conheço os acordes finais?

Prima Ballerina, de Degas
Dançamos com vários pares quando nos deixamos tomar nos braços por «Todos os Dias São Meus», cada qual com seu ritmo. O tango da artista e do engenheiro, o vira do engenheiro com os filhos, o hip-hop destes rapazes com a vizinhança, o fadinho malandro da vizinha de cima, uma dança tradicional "craniana" afinal moldava, os acordes de violino cansado do idoso solitário… E, porque o livro é pequeno, é dança sempre só  de um instante, meia canção, a deixar água na boca para mais um pouco. Há um crime, mas o crime pouco importa. Importam as vozes atravessadas das personagens, queria ter ficado com os pés moídos de revoltear com elas até ao pormenor, escada acima escada abaixo, para dentro e para fora dos apartamentos deste prédio onde ninguém-sabe-nada-todos-sabem-tudo-da-vida-dos-vizinhos. Podia valsar com a Razão, a Razão precisa de ser entontecida numa valsa antes do final.

E no fim compreendemos que a inocência deste baile de vizinhos é ilusória. Corrompida por solidões e vícios e manias, minada por sarcasmo em rede fina, no fim uma gargalhada na nossa cara de parvos de leitores. Uma brincadeira séria. E isso é o melhor.  Dançava tudo de novo.

"Ah, isso. Não, disso não sei nada. Eu moro no quinto, ela morava no terceiro, não sei o que é que se passou. Pronto, sei aquilo que toda a genta sabe, que morava sozinha, até diziam que alguém lhe tinha posto casa, mas ela de bonita não tinha nada, e dali não entrava nem saía ninguém senão ela, quero dizer, acho que não saía, eu nunca vi, se lá entrava ou não não sei, nem quero saber, que eu não sou de me meter na vida de ninguém."
Todos os Dias São Meus (pág.10)



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