28/11/2014

Ventos e valores

[Sónia Alcaso e a leitura de «Alma Rebelde»]

“A janela, mais alta do que um homem, abria-se para a escuridão. As cortinas pesadas não denunciavam a agitação, mas o vento incessante sacudia as ramadas das árvores contra as vidraças. Eram um muro contra a tempestade e o sopro ameaçador do vento, mas não podiam reter os sons, nem o calor. Há dias que não havia silêncio. O rugir implacável do vento na planície e o fustigar regular dos ramos contra os vidros, contra as telhas, contra as paredes, por dentro delas, magoavam os ouvidos. O vento uivava constantemente, soprando cinzas frias de dentro das chaminés, pelas lareiras abertas, para dentro das salas. Penetrava em todas as frestas da velha casa. Por vezes, levantava as toalhas e os tapetes, virava papéis e derrubava molduras. Era como se fantasmas gritassem, de dentro das paredes, o seu desagrado ululante.”
in Alma Rebelde (pág. 9)

No primeiro parágrafo é ele que reina: o vento (no casarão de Roussada). E começo por aqui, porque não posso deixar de mencionar o quão interessante me pareceu logo este elemento inserido nesta narrativa ficcional, talvez não por acaso: o tempo. Não só um tempo histórico, mas um também um tempo subjectivo, vivido ou sentido pela personagem principal, que flui em consonância com o seu estado de espírito. É com ele que a história começa e, na minha cabeça, durante toda a leitura, permaneceu este “rugir implacável do vento”, mesmo com o sol, a luz e as cores da nova casa.
Joana é-nos apresentada como uma mulher amargurada com o desconforto de viver numa época à qual não pertence, mas se submete – educada, como foi, para cumprir as suas funções de esposa. Estamos em pleno século XIX, em Lisboa, e temos como companhia personagens dentro de um certo contexto e situação social que gritam o tempo todo pelo limite psicológico onde transitam.
Carla M. Soares escreve de uma maneira deslizante e límpida, disposta a ir aos extremos das questões pessoais, dissecando valores e desejos.
Gosto do seu olhar atento à condição feminina - a mulher surge, aqui, como o protótipo do qual recairá sobre ela o pesado fardo de representar a ponta de um iceberg. Hoje em dia, uma parte do gelo já derreteu. Infelizmente, não todo.


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