16/12/2014

COMO AS CEREJAS


E quase de certeza, se apostasse não perdia!, que à mesma hora, duas ruas abaixo, o Pedro entretido nos mesmos afazeres, com a minha, como a nossa Bo.

Raquel Serejo Martins, Pretérito Perfeito, página 118


As conversas são como as cerejas, sempre ouvi, uma puxa a outra, ou porque estão juntas num pezinho ou porque a primeira abre o apetite da segunda e assim sucessivamente até nada restar senão pés e caroços, de que é que estávamos a falar? De cerejas, pois. Eu sempre fui muito esquisitinha com a fruta, tem de estar madura-quase-podre para não me arrancar uma careta, e depois há a história dos caroços e do sumo vermelho que suja os dedos e pinga para a toalha. Bom, isto dos caroços é desculpa, não sou como aquela menina do jet-set que só come fruta descaroçada pela criada, ou como provavelmente se diz agora, técnica doméstica de descaroçamento. As azeitonas também têm caroços e eu sou moça para aviar uma fartura delas sem queixumes. Sim, para mim as conversas são como as azeitonas – pede-se sempre mais um pires, e pode levar daqui o patê de atum e o vomitado de sardinha, azeitonas e pão, vinho e conversas e sou uma mulher feliz. E queijo, falei do queijo? De que é que estávamos a falar?

Este Pretérito Perfeito da Raquel é como as cerejas, no meu caso azeitonas, que são como as conversas: nunca se sabe que voltas dará. O que é surpreendente, dado que o ponto de chegada do livro nos é dado logo à partida.

E no entanto.

Tantas e tantas taças de cerejas, ou pires de azeitonas, se consomem entre aquela partida e aquela chegada, tantas vezes a boca se retrai com uma cereja, ou azeitona, brutalmente ácida quando já nos deixávamos embalar na delícia, tantas vezes quis dizer não, Vasco, não, Raquel, engana-me, tu que tantas reviravoltas dás na escrita surpreende-me com uma última pirueta, vira-te para mim e diz era a reinar, pá! Acreditaste, és mesmo totó, vá, come lá mais uma cereja, ou uma azeitona, e deixa-me encher-te o copo, que estás com carinha de choro.

O que tem todo este arrazoado a ver com a citação que escolhi para o encabeçar? Nada, ou tudo, porque a escolhi totalmente ao acaso, abri o livro e li a frase, e bastou aquela frase para me me recordar tudo o que antes dela lera e tudo o que depois dela li. E saber encadear escritas como quem encadeia conversas que são como cerejas, ou azeitonas, acreditem, não é para qualquer um. É para uma cereja tão, mas tão especial que se escreve com S.
    

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