[a leitura de Esta Noite Não Aconteceu por Ana Saragoça]
Eu escrevi durante anos o que achei que as
pessoas queriam ler, mas sinto-me cansada. Sei que posso ir mais longe. E para
isso vou usar as minhas próprias memórias como ficção. E a minha própria vida
como tema.
Esta Noite Não Aconteceu, página 73
Palavras
de Rosário Toledo, cujo nome e ofício se associaram de imediato na minha mente
à protagonista de um longínquo filme de Almodóvar. A memória do filme já está
muito esbatida, mas ambas, Leo e Rosário, são prisioneiras do próprio sucesso
como autoras de romance cor-de-rosa, ambas são frias e impiedosas, ambas têm um
segredo monstruoso, ambas são cegas à realidade mais próxima, ambas são
infelizes, e ambas são inventadas. Se são inventadas por si próprias ou por um
realizador espanhol e uma escritora portuguesa, isso é secundário, até porque,
tendo tanto em comum, são totalmente diferentes. O principal é que por trás do
rosa mais vivo se esconde muitas vezes uma alma mergulhada na mais negra
escuridão.
Tal
como os passageiros frequentes passam por cima das instruções de segurança do
pessoal de cabina dos aviões, assim os leitores batidos saltam enfastiados a
tal ladainha de abertura nos livros: ‘Esta é uma obra de ficção. Qualquer
semelhança com factos ou pessoas reais é mera coincidência.’ E fazem bem,
porque é uma das mais cabeludas mentiras da literatura de todas as cores. Quantos
de nós não se encontraram já retratados nas letras de um autor que nem sequer
nos conhecia, que era mesmo pessoa para ter morrido umas valentes décadas antes
da nossa vida ao mundo? Mera coincidência? Não. Acontece apenas que muitos dos
nossos segredos mais íntimos já existiram em outros seres, que a seu tempo
foram detectados por algum escritor.
Quanto
ao que esta noite aconteceu, ou não aconteceu… isso é a flor do segredo da Sónia
Alcaso.
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