18/09/2014

Entre o Ramalhão e a Revolução

[tRaquel Serejo Martins e a leitura do «Revolução Paraíso]


Emocionado, considerou que os caracteres Helvetica assentavam lindamente às palavras. Reconfirmou a inexistência de erros e prosseguiu para a composição da segunda linha. Uma infinidade de braços metálicos, rodas dentadas, pinças e rolos, gerou um turbilhão de ruído. O maquinar ensurdecedor da Linotype, modelo 25, extravasou as divisórias de contraplacado e vidro fosco, enchendo o piso térreo da tipografia. Adão ritmou a digitação das 72 teclas, qual pianista clássico a atingir o momento mais intenso da partitura. Lia as palavras rabiscadas por Viriato numa folha de papel pautado sem reter o significado da frase. Soavam-lhe eivadas de um espírito poético; havia ali uma certa melodia que ajudava à aceleração do trabalho.
Aparentemente, a dança do operador com o complexo teclado continuara ausente de erros. A confirmar-se, era acontecimento raríssimo. O linotipista esperou alvoroçado que o engenho cuspisse a derradeira barra de caracteres cobertos chumbo. Enfileirou o conjunto de moldes e encaixou-os numa estrutura de metal. Conferiu o ordenamento das colunas e apertou as trancas. Martelou as linhas com um maço de madeira, nivelando os caracteres, e ouviu um “hurra!” vindo do exterior da cabina. Malhou com maior intensidade, pousou o maço e pegou na chave de ferro para apertar a moldura. “Estas já não caem”, pensou, ao conquistar o último milímetro aos ferrolhos. Levantou e girou a maçaneta da porta; deu-lhe um pontapé, fazendo-a deslizar, e saiu de bandeja entre mãos. Parecia um padeiro com uma fornada de carcaças acabadinhas de cozer.

Revolução Paraíso (pág. 17)


Assim começam os trabalhos para a edição da nova Revista de Portugal, talvez a primeira evidência da dialéctica Queirosiana que atravessa o livro, porque o nome da revista tem por base o livro que n’Os Maias, Carlos da Maia e João da Ega queriam levar a estampa, e num tempo de mudanças aceleradas, e em menos de 100 páginas a Revista de Portugal passa a A Revolta.
Assim, quase!, começa este livro que acabo de ler.
Assim nos leva o autor para um tempo, o 25 de Abril, concretamente para os meses que se seguiram, meses que para a história ganharam o epíteto de Verão Quente, e para um espaço concreto, a Lisboa da Travessa dos Remolares ali para os lados do Cais do Sodré, o que faz com que ao romance lhe assente bem o rótulo de romance histórico, tanto mais que o autor não descuida esse lado, que o mesmo é dizer a agitação revolucionária do momento, que um jornal tem de estar em cima dos acontecimentos!, pelo que no tocante à não-ficção é de salientar o trabalho de pesquisa e investigação, a que não deve ser alheio o facto do referido autor ter formação em jornalismo.
Porém, sobre o tempo e o espaço, as personagens, Adamantino Teopisto, César Precatado, Dona Deodete Machado a canina secretária, e até aqui a Santíssima Trindade, Manuel Ginja o revisor, Adão da Purificação o impressor, Raul, Viriato, Pandora, a estagiária ou a esperança em estágio, Amália fadista muda, ou outro o fado, e Eva, um camaleão no sótão, sem paraíso!
E a cada personagem a sua história, a pequena história, a história comezinha, as personagens tão bem fabricadas, as personagens pãezinhos quentes prontos a comer, o autor um delicioso contador de histórias. As personagens redondas, com nomes redondos como carimbos, a cada uma o intrínseco simbolismo do nome de baptismo apesar de a cada leitor a sua Eva.
E mais não digo, apenas deixo o convite, mordam a maçã, que o mesmo é dizer, peguem no Revolução Paraíso e deixem-se morder!


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