21/09/2014

Do Infinito Consolo das (Mulheres de) Letras

[Ana Saragoça e a leitura do «Revolução Paraíso»]

‘Das trevas de um desespero incomensurável espigou a invenção das mulheres de letras. Forjou-as como seres capazes de o acarinharem incondicionalmente e sem segundas intenções. Eram mulheres ansiosas por resgatá-lo àquele desgosto sem fim.
- Mulheres capazes de me recolherem no colo e afagarem o cabelo.’
Revolução Paraíso (págs. 219/220)


Comecei a aprender História nas paredes. Ainda não sabia que ela estava a acontecer à minha frente, mas não perdi pitada dos emocionantes desenvolvimentos diários dos primeiros tempos pós-25 de Abril. No banco traseiro do carro do meu pai, esborrachava o nariz contra o vidro e lia as paredes onde se exprimiam graficamente os embates de todas as facções em harmonia (soldados, camponeses e operários de braço dado numa caminhada de peito aberto em direcção a amanhãs cantantes) e em conflito (capitalistas de chapéu alto, casaca e narizes aquilinos, chupando enormes charutos e escondendo atrás das costas bombas iguaizinhas às dos Looney Tunes). E os símbolos: a foice e o martelo, a estrela vermelha, o punho erguido, a roda dentada, as três setinhas. E os galhardetes: comuna, facho, vira-casacas, burguês, reaça, bufo. E os slogans, cuja infinita variedade deixo à descoberta do leitor na prodigiosa compilação contida neste livro.

Ao contrário da minha mãe, geneticamente programada para o medo, eu achava tudo aquilo uma festa pegada, uma festa linda, tão linda que nos cartazes em que o PRP mandava ‘armar o povo’ eu lia sempre ‘amar o povo’. E os adultos eram uma fonte inesgotável de entretenimento. Não havia reunião de amigos ou familiares que não acabasse aos berros e aos murros na mesa: ‘Eu estive em África, pá!’ ‘Não foi para isto que se fez o 25 de Abril!’ ‘Era todos encostados à parede e fuzilados!’ – de repente, homens incapazes de matar uma mosca ficavam de cinco em cinco minutos a uma unha negra de se esganarem mutuamente, com as mulheres divididas em duas facções: as que gritavam para eles não se degraçarem e as que gritavam em incitamento, giríssimas como a Pandora do livro, de saias curtas, sapatos de plataforma, maquilhagem berrante e sempre sempre de cigarro em riste, céus, como eram giras aquelas mulheres e como eu sonhava vir a ser como elas.

Comecei a ler nos enormes jornais de parede do MRPP, gritos amarelos, vermelhos e pretos desenhados com uma precisão directamente contrastante com o ar descabelado dos seus autores. O amor pelas letras, que já vinha da primeira infância, cresceu exponencialmente ao vê-las saltar das páginas dos livros para as paredes da cidade. E até hoje é nas letras que reside a maior fonte de consolo e emoção e excitação que conheço.

Que tem isso a ver com mulheres de letras? Para saber isso terão de ler o livro do Paulo.

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