23/11/2014

Alma Submissa


[A leitura de Alma Rebelde por Ana Saragoça

‘Rosária não tinha ilusões acerca da vida, era velha. Sabia. A vida era dura e só tinha para oferecer as pequenas coisas, as satisfações do dia a dia, uma cama quente, um estômago cheio, uma ou outra gargalhada, a amizade dos que a rodeavam. E não era pouco, pois não? Mas Joana queria mais, queria… o que queria a sua menina? A ilusão da liberdade, de que tantas vezes falava? Rosária não entendia. De que servia a liberdade, de estômago vazio?’
Alma Rebelde, página 77

Até há menos de cem anos, era mais do que normal: as filhas, fossem aristocratas ou plebeias, serviam de moeda de troca para melhorar – e muitas vezes salvar – a situação da casa paterna. Não vivi nesses tempos, mas imagino que, conquanto tal estatuto não fosse à partida atraente, seria encarado e aceite como inevitável por quase todas as jovens. Mas, imagino também, não por todas. Não por esta Joana. Só que a rebeldia de Joana é tremendamente parecida com submissão. Sabemo-la rebelde apenas porque, ao longo deste romance tântrico em que todos os estados de alma das personagens são descritos até ao último pormenor, vamos acompanhando não o seu percurso externo mas o que lhes passa pela cabeça.

Para mim, Joana personifica perfeitamente a maneira de ser portuguesa, este nosso fado de resmonear entredentes enquanto alombamos calados com toda a espécie de injustiças; o lusíssimo ‘Vou, mas vou contrariado!’; o esperar, quase procurar obstáculos a cada momento de felicidade só para poder dizer a seguir: ‘Eu sabia! Era bom demais! Quando a esmola é grande, o pobre desconfia!’

Joana passa quase todo o livro com a chave vencedora do Euromilhões na mão: um noivo que, apesar de imposto pela família, a ama e é amado por ela. E o que faz? Olha constantemente por cima do ombro, pensando que aquilo é para os Apanhados.

Há porém neste livro uma alma que verdadeiramente leva a sua rebeldia às últimas consequências, arriscando a vida e a dos seus filhos por amor. Só a conhecemos epistolarmente, é a desventurada/aventurada prima Ester, que se lança de cabeça numa paixão extra-conjugal:
‘Talvez te tenha feito acreditar que a felicidade é impossível. Mas não é. (…) Espero que não lhe vires as costas, por pudor ou por medo. A vida é um longo inverno, para quem não conhece o amor.’ (página 197)

Põe os olhos na tua prima, Joana, e suga-me esse Santiago até ao tutano.




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