20/11/2014

Alma minha gentil...

[A leitura de Alma Rebelde por Cristina Drios]


“Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.”


Este soneto de Camões rodou na minha cabeça durante toda a leitura do romance “Alma Rebelde” da Carla M. Soares. Confesso que aos meus olhos, a tal “rebeldia” anunciada de Joana, personagem central do romance, uma menina de boas famílias a quem, como soía ser no século dezanove, foi exigido um casamento de conveniência, me pareceu tão gentil e inócua quanto as suas impecáveis boas maneiras. Afinal, dos rebeldes esperam-se convicções, confronto ou, no mínimo, uma opinião, um levantar de voz!... mas Joana apenas se deixa levar pelo destino que lhe coube, obedecendo e baixando a cabeça a cada passo. Talvez não pudesse ser esta Joana de outra forma, naquele meio e naquela época, talvez..., apesar das ganas que me deu de entrar pelo livro adentro e de lhe dar um forte abanão aqui e ali!... Em contraponto, a prima Ester, personagem apenas entrevista nas linhas das cartas que trocam, sofre o real drama de um casamento imposto com um Velho (o V maiúsculo é esclarecedor quanto baste) que se desdobra num quotidiano de abusos e maus tratos. O romance retrata assim, com subtileza, numa escrita escorreita e leve (mas nunca leviana!), a condição da mulher, sempre subalterna e inferiorizada numa sociedade patriarcal – condição essa que “democratiza” uma galeria de inesquecíveis personagens femininas, as burguesas e nobres Joana, Ester e    D. Ana, e as plebeias Rosária e Brites – . Por debaixo da capa cor de rosa do relato dos amores e desamores de Santiago e Joana, encontra-se o fresco rigoroso de uma época, cujos preconceitos e males, ainda perduram nos dias de hoje: infelizmente, basta abrir o jornal e ler a notícia de mais um crime hediondo de violência doméstica. 


“Quem me dera que Ester aqui estivesse, ela pelo menos deve compreender como me sinto. Não me esconde que é infeliz, tantas vezes a encontrei a chorar. Sei que o Velho a ofende e lhe bate muitas vezes. Será o que me espera? Um homem para me bater? Para me trancar em casa e me fazer filhos, como o da Ester? (in Alma Rebelde, pág. 13)

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