Este conto não é novo. Foi publicado um pouco antes do Natal no blogue Crónicas de uma Leitora. Partilha-se aqui por ser, para além de um conto passado no Natal, um conto da Primeira Grande Guerra.
Abriu a porta e saiu para a noite
fria, abandonando atrás de si o calor da taberna e os sons familiares dos
homens, risos e ruídos, pequenas discussões sem propósito nem consequência, o
abandonar das tensões e dos medos nessa bolha de ilusória protecção, antes do
regresso nocturno à família ou à casa vazia. O odor da neve substituiu o
perfume azedo do vinho e ele respirou fundo. Arrependeu-se assim que o ar gelado
queimou o seu caminho até aos pulmões, lhe afastou a indiferença do álcool como
quem afasta de repente uma cortina e lhe revelou a exaustão absoluta e
impiedosa que há muito lhe contraía os músculos. Espalmou a mão sobre a porta
escura, agora fechada, para sentir a rugosidade antiga da madeira. Tinha
vontade de ficar ali, onde não importava.
Fora longo o caminho, quilómetros e
quilómetros de comboio e a pé de França para a Serra, com essas palavras na
boca e um desejo vago dos lugares e cheiros familiares. Queria chegar antes do
Natal, era preciso um prazo a empurrá-lo e era quase tarde demais, ou talvez
fosse tarde demais desde que partira, um no meio dos tantos que nunca
regressariam. Por isso é que era importante voltar. Porque estava vivo. Voltou
as costas à segurança da taberna. Os sons abafados das botas a esmagar a neve estouraram-lhe
nos ouvidos. Agachou-se, contendo a muito custo o impulso para se atirar para
trás de uma carroça parada na estrada e, ofegante, estudou a escuridão da rua e
as janelas iluminadas, à procura da ameaça. A cabeça dizia-lhe que estava
seguro, estava em casa, era Natal, mas corria-lhe pelas costas um suor frio e
familiar. Fitou com incredulidade os pés, a desenhar marcas na brancura
inviolada do nevão acabado de cair. Neve
branca e limpa de lama e porcaria. Neve da sua terra no cimo da Serra.
«Não é nada. Não é nada.»
As palavras não diminuiram o ritmo
do tambor de guerra que lhe rufava no peito. Tanto medo de ter dentro uma
reserva eterna de memórias vivas. Levantou-se
devagar, temendo que o vissem de uma janela ou da taberna. Não queria que
viessem saber o que se passava, não era nada, só a batalha no sangue e nos
ouvidos. Os estampidos, as explosões, os gritos, a morte que, no seu silêncio,
gritava mais alto que as sirenes.
«Não é nada, vai para casa enquanto
podes.»
Ajeitou o casacão coçado que lhe
fora passado de outro homem. Usava há muitos meses o casaco de um fantasma,
grande demais para um homem como ele, que nunca fora alto nem forte e se via
reduzido a pele e osso pelo muito tempo de trincheira, fome, frio e medo.
Tantas vezes sonhara com a sopa de couves da mãe, com o cabrito assado do
Natal. Tantas vezes tentara fechar os olhos e sentir na língua o sabor desse
repasto… tantas vezes, em vão. Sentia o sabor da ração magra, da sua própria
fome, da terra enlameada, da bosta e do mijo, da pólvora, do gás mostarda que
deixava à sua passagem sempre um vestígio que se colava à garganta. Por vezes,
achava que não se livraria dele e morreria envenenado um dia, daí a dez anos ou
vinte ou uma centena. Que importava. Ia para casa. Ia para casa ou chegaria
atrasado. Ignorou a escuridão e pôs um pé à frente do outro, como se fazia em
cada batalha, o medo apertado na barriga e as pernas obedientes.
Nada mudara na forma como o granito
se agachava contra o chão nem no modo como a luz do fogo na chaminé se
escondia, tímida, por trás de portadas cerradas contra o frio do Inverno
serrano. Tinha a mesma forma tosca e escura, o telhado irregular acachapado a
deixar adivinhar a grossura das paredes de pedra que o suportavam, uma única
porta cujas fendas a mãe escorava com feno contra as rajadas frias. Trepou os
últimos metros de trilho escorregadio a tremer, quase sem sentir os pés e a
mãos, sem saber se o que o deixava dormente era o frio. A casa parecia esconder-se
dele. Talvez lá dentro também se escondessem da certeza de que filho e marido
não regressaria. Do medo de que regressasse. Talvez não o reconhecessem, talvez
já nem o quisessem, mãe e mulher tanto tempo abandonadas à sua sorte.
«E volto-lhes assim.»
Por fora vinha mais mirrado do que
quando pastoreava na serra e se alimentava de pão, vinho, cebola, um naco de
toucinho ou queijo, mas trazia o mesmo nariz afilado, as mesmas orelhas que se
avermelhavam por tudo e por nada, a mesma face sempre escurecida por uma
promessa de barba. Era por dentro que ele era outro, e esse saía-lhe pelos
olhos e pela voz tantas vezes que nem sempre sabia qual seria ainda.
- É dos homens que trago comigo. –
murmurou. Dantes trazia-se apenas a si e ao espaço aberto, trazia a melancolia
e a a alegria de dias infindáveis entre o céu, o solo duro da montanha e os
seus animais, noites entre as pernas da mulher. Agora eram as caras sem nome,
as formas sem cara, os pedaços de gente que o preenchiam. Um ano e meio era
pouco tempo no espaço de uma vida, muito tempo apertado numa trincheira, desde
que chegara a França que não sabia de si no meio dos retalhos dos outros e
agora não sabia bem quem tinham devolvido à família.
Chegou-lhe o perfume reconfortante
da lenha queimada e o aroma delicioso do cabrito, um feitiço a chamá-lo. Andou
mais depressa quase sem dar por isso e bateu à porta, com medo de abri‑la sem
aviso e dar de caras com a caçadeira do pai com a cara da mãe por trás. A cara
da mãe na ponta de uma caçadeira era uma qualquer cara alemã. Não, a cara da
mãe, escura e mirrada, nunca seria uma grande e vermelha cara alemã, nem na
noite de Natal, corada do vinho e do calor da lareira. Tinha visto muitas
dessas caras coradas a sorrir como sorria a mãe no Natal, na consoada em que tinham
cantado todos de um e do outro lado da terra de ninguém, espreitando do fundo
das trincheiras, lembrava-se da estranheza das vozes, do medo enquanto uns e
outros atravessavam essa terra de ninguém e se encontravam no meio, da
impressão das palmas calejadas das mãos inimigas nas suas, as mãos eram iguais
afinal ao trocar votos de Festas Felizes, a mesma alegria dorida, ao festejar
sem cabrito nem família. Tinham sido companheiros por um instante, e matado uns
aos outros dias depois, disparando como se pedissem perdão. Ao seu lado tombara
no primeiro dia do ano um homem sem pernas, mais adiante um caíra por ser
demasiado lento com a máscara de gás. Estremeceu, engoliu o sabor a morte que
lhe subia das entranhas e bateu com mais força.
- Ó da casa! Abram, que sou eu. Ó
minha mãe, é o João Tomé. Fidelina, sou eu… acho que sou eu. – Primeiro gritou,
depois já não. Soprava com a testa encostada à aspereza confortável da madeira.
– Minha mãe, abra a porta que tenho frio.
Abriu-se uma fresta e um olho escuro
em meia cara muito pálida e lisa espreitou, desconfiado.
- Fidelina.
- João Tomé, és mesmo tu?
A porta abriu-se de repente e ele
viu-se puxado para dentro, para a luz meiga das chamas, por mãos incrédulas que
lhe apertaram o rosto, lhe deslizaram pelos ombros, a comprovar‑lhe a
existência, a assegurar‑se de que era palpável. Sentiu-se um fantasma.
- Rosa, é mesmo o seu filho!
Exclamações. Um grito. Braços sobre
ele, uma gaiola de calor em seu redor, uma gaiola de lágrimas femininas, o seu
nome gritado com alegria, a sua condição de filho e marido e regressado. Entrou
em pânico. Por um instante lutou contra elas, empurrou mãe e mulher, que na sua
alegria espantada mal notaram a resistência. Forçou-se a aquietar o corpo, à espera
que amainasse essa explosão demorada de amor. Foi difícil. Conseguiu. Fidelina
livrou-o do casacão.
- Vens tão magro, homem…
Sentaram-no à mesa e, com a
diligência das cuidadoras, empurraram para a sua frente um prato cheio. O perfume
antigo e forte do anho encheu-lhe o corpo. Atirou-se a ele como se não comesse
há vinte anos. Talvez não comesse bem há vinte anos, cada mês na trincheira era
uma eternidade. As mulheres viram-no devorar, levando a comida às próprias
bocas num silêncio de perplexa maravilha. Fidelina fitava ansiosa o rosto
encovado, à procura do marido. Queria ver-lhe os olhos, saber se ainda traziam
por ela aquela paixão que nunca a deixava descansar.
- Deixaram-te vir para o Natal?
- Sim. Estou cá. Queria chegar e
cheguei a tempo. Cheguei a tempo.
- Estás bem?
Ele ensaiou um sorriso que lhe saiu
torto, um esgar. Sabia lá o que estava.
- Estou vivo.
Fidelina abriu a boca cheia de
perguntas, a sogra sacudiu a cabeça. O coração de mãe dizia‑lhe que nessa noite
era melhor calá-las.
- Pois vieste mesmo a tempo para a Consoada,
isso é verdade. – afirmou, como se o filho tivesse ido só dali a Lisboa um mês
ou dois – Daqui a pouco passa a carroça do Silvano e vamos à missa do Galo.
Queres?
- Não, mãe. Estou cansado. – Recostou-se,
com o calor das chamas a amolecê-lo e o peso do cabrito no estômago. Já não
tremia, a não ser no fundo da alma.
- Também não vou, mãe. – anunciou Fidelina, de
olho no marido. – O senhor padre há-de entender.
O crepitar das chamas aprofundava o
espaço vazio entre a mulher que tanto tempo esperara uma carta a fazê-la mais
uma viúva na serrania, e o marido inesperadamente regressado.
- Tinha medo que não voltasses.
- Estou cá. Vim para o Natal. –
repetiu, de repente vazio de objectivos. Fidelina entrelaçou à força os dedos
nos dedos compridos e rigídos do seu homem. Era seu, havia de ser capaz de trazê-lo
para si novamente.
- Rezamos tanto por ti e Nosso
Senhor ouviu-nos, trouxe-te logo nesta altura! Foi tudo tão triste sem ti,
João, sem sabor, sem nada. – Apontou vagamente para a comida, ainda em cima da
mesa, e tocou nos lábios. – Estive sempre à tua espera, sempre, mas quando
chegou a carta da Rosa…
A Rosa, viúva do Olegário,
companheiro de infância, camarada de Companhia e trincheira. Só na morte não o
seguira, o seu corpo intacto, o do outro desfeito. Estremeceu da cabeça aos
pés. Os dedos quase se soltaram dos dela, mas Fidelina apertou-lhos e arrastou
o banco para chegar-se mais. Ele quis fugir mas não fugiu, reconheceu-lhe o
cheiro a mulher e a pó de talco que o intrigara desde a primeira vez que roçara
por ela, para lhe sentir as carnes. Nenhuma das putas que o aliviara lá longe
cheirava assim. Era o cheiro a casa e à sua cama.
- Tens que voltar? Não ficas?
Não disse nada. Tinha que voltar.
Não voltaria. Viera à procura de um esquecimento temporário na casa da sua
infância, prometido em cheiros familiares e garfadas de boa comida de pobre, e
nas coxas da mulher. Depois falariam, antes levou-a para a cama atrás da
cortina. Fidelina despiu-se, ele não. A madeira velha chiou sob o peso deles
quando ela o recebeu, primeiro tímida, depois toda calor e entusiasmo. Era seu.
Seu. Abriu-se a ele, deixou-o avançar, em cada investida, os horrores recuaram para
um lugar mais escuro ao fundo da casa, curto e doce o esquecimento do amor.
- Vou fugir, Fidelina. – anunciou,
gasto o fervor, as duas cabeças juntas na mesma almofada – Fico estes dias e
depois vou-me. Não volto para França. Morro lá.
- Não fico aqui sem ti.
- Não te deixava. Vens.
Lá fora, a carroça chiou. Fidelina
saltou da cama, vestiu-se à pressa. A porta abriu‑se e deixou entrar a mãe e o
perfume da neve. João sorriu. O medo vivia longe do aroma do Natal.
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